“Nada em nós ventila, só o vento dentro do vento nos
alcança, sem notícia, nem claridade, nem viagem nem sal marinho” (Nuno Ramos).
Coloco o grão-de-bico deixado de molho, desde ontem, pra
cozinhar na panela de pressão. Histórias antigas de panelas explodindo passam
rápido pela minha memória, a pele solta do grão inchado entupindo os buracos
por onde o ar deveria escapar. Penso no meu irmão, sempre tão mais artesão de virar
o sentimento em palavra. Penso nele conversando com a mãe. Tateando
a coragem. Pedindo ajuda pra se desvencilhar de si mesmo e colocar um pé
adiante de outro pé adiante. As conversas lentas na cozinha onde a luz do dia
fazia contraste e em vez de iluminar, protegia as sombras.
Eles conversavam naqueles meios de tarde, a louça já lavada,
as panelas de alumínio brilhando, o café já começando a pingar no bule
comprido, também ele de alumínio. Eles conversavam e eu ouvia. Do que falavam
não era nenhum segredo, mas ainda assim eu me esgueirava para escutar,
espichava o ouvido, o coração quase atrapalhando a missão de tanto que
tum-tum-tum.
Pego na cesta um gengibre já querendo murchar, tanta secura
por dentro. Vou no quintal, agora mato alto, e encontro coentro, florindo
brancuras. Também ele meio amarelando, o sol do meio dia paralisando até a
vontade tênue. Faz calor. Um calor modorrento.
Penso no meu irmão para desviar de pensar na mãe. Em seus
sabimentos. No jeito de ensinar as coisas mais duras, mais fundas, como quem
ensina a cortar a lenha ou a dar ponto de tricô. Ela nem lia. Nem escrevia. O
mundo não era um livro aberto – as páginas brancas ordenadas em sentenças,
encadeamentos, sentido. O mundo dela era cheio de recônditos e entranhas.
Sentidos só vezemquando revelados. A mãe era toda poesia, os cabelos soltos, as
mãos rugosas, os olhos transluzindo todos os universos que ela tornava
habitados.
Pensar nela me paralisa, agora. Devia ser o contrário: sem
ela, sem o pai, eu navio subindo as âncoras e capaz de errar, tantos mares. Mas
lembro dela, lembro essa minha orfandade e ai. Falta o ar.
Na caçarola jogo cebola, gengibre, cominho. Também duas
folhas de louro. Três dentes de alho, inteiros. Azeite, bem pouquinho.
Quando eu tinha medo, ela falava de sol e chuva, de secas e
umidades, de estações. Eu entendia, sem entender. Que o presente é frágil. Que a
vida é ciclo. Que tem tempos de aridez e estio. E outros de festa úmida e florescências.
Que a coragem está no passo, mas também na espera – pelo tempo certo e
oportuno.
O ar que me falta, há de voltar a soprar? Quando eu
doente, um amor derramado em caldos, nem todos bons. A canja, claro, imitando
um sol desmaiado, pra não provocar a doença. O chá grosso de açúcar queimado,
cravo, canela e gengibre. Tomado quente, só quando a cama já feita e o sono já
próximo. A suadeira exorcizando o que quer que estivesse ali, roubando as
forças. O chá de alho também – no limiar entre o ruim e o bom.
O irmão dominava as palavras e assim arrancava da mãe
bonitezas e filosofias – ele queria aprender a viver, e mãe lhe passava as
chaves com que abria o cada dia. Eu sempre fui de silêncios. De dores apertadas
no peito ou no pescoço. Da mãe eu só arrancava os cuidados práticos – os
remédios na doença; a comida no todo dia; o cerzido nas roupas; a cama feita
nas manhãs.
Corto em cubinhos a cenoura e a vagem. Ponho pra cozinhar no
vapor. O ponto certo entre o nem cru, nem cozido demais.
Penso na mãe, no pai e nessas podas à revelia. Eu agora
menos afeito à minha terra, à casa e à rua onde cresci. Mas incapaz ainda assim
de me lançar.
Acendo o fogo debaixo da caçarola e sinto o cheiro do
gengibre, do cominho, da cebola. Todos os cheiros misturados, tão fortes, tão
bons. Coloco o grão de bico. A cenoura. As vagens. O dahl vai ganhando corpo, o
caldo grosso, os sabores intensos.
Antecipo o gosto, sabendo o calor, preparando as bochechas e
o estômago quentes. Sabendo, sem saber, que é comida de curar. Cortando o
coentro e jogando ali, ainda que nem faça sentido comer comida tão quente num
dia tão quente. É estranho. Tão estranho que pra criar refresco, seja
necessário ainda aumentar o calor.
Sento pra comer. Sozinho, na mesa onde aprendemos a ser
família. O irmão, bem ensinado nas coragens, agora do outro lado do mundo. A
comida aquece a boca, desce esquentando peito e barriga. Fervura. O gengibre, o
cominho, o coentro clareando as maçãs do rosto, ensinando ao ar os caminhos por
onde inflar os pulmões.
Dentro de mim, algo faz vento e finalmente sou capaz de respirar.
paragem: quando para o ar dentro de nós.
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