19 abril, 2013

receitas vegetarianas - destempero

mas olha só que perdi a receita inteira nesse fogo alto demais e agora vou ter que começar tudo de novo que disso não se salva nada: tudo com cheiro e gosto de fumaça e ai que tem dia que é assim mesmo que parece que as mãos excretam o limão que trazemos por dentro e azedam tudo e talham tudo que tocam e é que me dá tanta pena o trigo o óleo os ovos as maçãs e todo esse desperdício que chega a me doer e ainda mais porque tudo o que eu queria hoje era um pequenino natal do cheiro da canela espalhando pela casa varrendo as melancolias recentes e agudas e as nozes penetrando doces nas frestinhas das dores antigas feito bálsamo mas agora as pequenas epifanias ressecadas logo hoje que eu acordei precisando tanto-tanto desse milagre de recomeço e me pus a cozinhar ainda de camisola azul de renda acordando os músculos no esforço de mexer essa massa desse bolo que eu adoro e que é tão ruim de mexer mas eu não sabia fazer outra coisa pra espantar os fantasmas dos sonhos e suas sombras no meu dia ainda porvir e assim fui passando na peneira as três xícaras de farinha de trigo ao mesmo tempo em que o café passava pelo filtro de pano que eu trouxe de outras vidas e passei na peneira também a colher de bicarbonato e a colher de sal e a colher de canela em pó já tão fininhas e leves mas também escondendo seus minúsculos nódulos e enquanto o pão esquentava na torradeira eu ia quebrando os ovos numa outra tigela torcendo pra que nenhum deles estivesse estragado que me aflige tanto esse mistério do ovo às vezes galado me enche de tristeza o galo que não foi que mal chegou a ser pintinho mas hoje que eu me esqueci de quebrar num potinho os ovos antes de coloca-lo na tigela definitiva nenhum ovo fecundado só aquela festa de amarelo forte os pequenos sóis ajudando a acordar o dia e então o açúcar que eu também fui peneirando aos poucos já me sentindo mais protegida pela mistura de ovos e açúcar que ia ficando clarinha clarinha e era como se fosse se diluindo o que em mim acordou doendo e me amansassem os medos e os sustos conforme o café quente e doce amornava a boca e o hálito ainda faltava a xícara de óleo que se incorporou fácil à mistura e enquanto tudo isso descansasse fui cortar as últimas três maçãs que tinha em casa tirando a casca e as sementes e fatiando cubos e deixando ainda um pouco de ímpeto para triturar as nozes apenas com as mãos para me livrar do que em mim é violência e com tudo pronto e o café tomado finalmente fui misturando a parte úmida à parte seca bem devagar que essa massa é consistente e pensar bem por que é que fui me meter a fazer isso logo de manhã logo precisada de levezas se a massa é pesada e meus braços reclamaram e nem vai fermento para fazer as pequenas bolhas de ar só bicarbonato pruma massa que mal cresce e só quando a massa finalmente misturada e quando as maçãs finalmente incorporadas e quando as nozes finalmente incluídas caindo na forma untada e enfarinhada é que fui tomar um banho e lavar os cabelos e me arrumar praquela festa que tinha acabado de inventar mesmo que fosse apenas para distrair o chumbo instalado entre o peito e o estômago e já ia me sentindo salva o alívio de ter transformado a dor em bolo e o dia esquisito em celebração quando o cheiro da canela errou em cinza e sem que eu saiba ainda localizar o momento-quando a alegria desviou em acidente agora estou aqui nessa beirada do choro tão-tão espantada que minha chance de recusar a melancolia tenha se transformado em carvão e destampado esse fluxo aberto as comportas de tanta coisa que só precariamente a gente contém e eu sei bem que é porque esse acidente sem vítima o que fez foi reabrir ferida na minha esperança.

Um comentário:

  1. veja que ontem mesmo a promessa de quinze jaboticabas quase amadurecidas e roubadas dos pássaros já quase viravam geléia quando se tornaram carvão. duro, preso no fundo da panela. o cheiro amargo do carvão por toda a casa. beijo, v.

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