depois de um tempo, a gente quase se acostuma a não pensar
no assunto e então o perigo de ser surpreendido com algum pedaço do outro.
ainda me assusto. sei que nem é mais amor. ou ao menos acho que sei. é mais a
saudade do espaço que ela abriu por dentro de mim. saudade de quem eu era ali,
naqueles olhos, com aquela mão dada à minha, os cabelos brancos dela que eu
amava tanto quando o vento trazia pro rosto e a desculpa de coloca-lo por
detrás da orelha, o rosto dela quente e terno. uma saudade que nada nem ninguém
amansa. assim que hoje saí de manhã para passear o cachorro e também comprar
pão e leite e frutas. e choveu uma chuva que eu não esperava, que me apanhou
desprotegido. eu ali no meio da rua, o cachorro tentando correr pra casa. o pão
quente encharcando. as frutas melancólicas com as gotas escorrendo pelo
saquinho cor-de-rosa. e eu me lembrei dela. sem motivo aparente. talvez porque
quando a chuva desabou eu estivesse numa esquina – encruzilhada.
talvez porque numa das últimas vezes que nos vimos, a avenida larga, o céu
cinza também ele adiando a decisão, o passeio longo, e os passos tropeçando na
fundura da tristeza de saber que ela não ficaria. se eu soubesse como, ela me disse. e naquela esquina onde a chuva
me alcançou, tantos anos depois, eu ainda sem saber. o que dizer a ela. o que
dizer pra mim. a gente acostuma, sim. ainda que desconfiando de tudo o que
perdeu. ainda que não parecesse certo pedir que ela se dividisse, o marido, os
filhos, toda aquela vida que ele, nenhuma pista. existiam apenas naquele
espaço, bolha-de-sabão colorida que agora não mais. encharcados, eu e o
cachorro. abro a porta, ponho as compras sobre a mesa da cozinha, pego uma toalha
pra secar o cachorro, entro eu mesmo no banho quente, a água aliviando o frio
e o desconsolo. pouco, no entanto. saio do banho, me seco, coloco roupas quentes
e, já na cozinha, água pra ferver. já tinha casado uma vez, mas só depois dela
a consciência da absoluta solidão. na urgência de tê-la sempre perto. na falta
de ar de sabê-la longe. na saudade dos abraços lentos e infinitos. no trabalho
que dá não pensar nela. tiro dos saquinhos molhados as maçãs, as peras, os
maracujás. pra distrair as mãos, pego duas maçãs e duas peras e lavo e corto ao
meio e tiro a semente e pico em cubos e levo ao fogo, pra amolecer. a água
agora chá-de-cidreira. me vejo no vidro do armário da cozinha, o moletom cinza, o
rosto abatido e me sei convalescente. quase dez anos, e ainda convalescente,
ainda sujeito a recidivas. ou reincidente no crime, vai saber. vai saber se não sou eu quem cutuca a casquinha, só pra me sentir assim vivo e latejante. pra
recuperá-la um pouquinho na lembrança do que fomos. coloco numa vasilha pouco
mais de meia xícara de manteiga, um pouco de canela, uma xícara de farinha de
trigo, uma xícara de açúcar. demerara, que é o que tem e é o que mais combina
com esse crumble. misturo, delicado,
os ingredientes até o ponto em que esfarelam. como se fossem memória. como se
assim a falta dela me deixasse menos nu na chuva agora virada garoa. sem ela: o
inescapável da consciência me lançando em pleno alto-mar. pego outra vasilha,
lambuzo os dedos como ela costumava fazer, unto tudo antes de colocar as frutas
escorridas, mais o maracujá recém-aberto. pra quebrar o doce. pra ser honesto
com os sentidos, pois que não há nada tão apenas-doce. jogo a farofa por cima
de tudo e coloco as coisas no forno. sento ali em frente, esperando roubar
algum calor. o chá entre as mãos. o nome dela entre os lábios. se o
pronunciasse, ela ouviria? saberia dizer de onde aquela voz, se do passado, se
de agora? se do futuro que prometi um dia – a gente num barco que nunca
aporta, à deriva um do outro, um no outro? na boca, a semente de maracujá atropelando
a brandura da maçã e da pera.
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