03 setembro, 2013

Amizade*

"A amizade é tão estreitamente ligada à própria definição da filosofia que se pode dizer que sem ela a filosofia não seria propriamente possível. A intimidade entre amizade e filosofia é tão profunda que esta inclui o philos, o amigo, no seu próprio nome e, como frequentemente ocorre para toda proximidade excessiva, corre o risco de não conseguir realizar-se. No mundo clássico, essa promiscuidade e quase consubstancialidade do amigo e do filósofo era presumida, e é certamente por uma intenção de alguma maneira arcaizante que um filósofo contemporâneo - no momento de colocar a pergunta extrema "O que é a filosofia?" - pode escrever que esta é uma questão para ser tratada entre amis. De fato, hoje a relação entre amizade e filosofia caiu em descrédito, e é com uma espécie de embaraço e de má consciência que aqueles que fazem da filosofia uma profissão tentam acertar as contas com este partner incômodo e, por assim dizer, clandestino de seu pensamento. [...]
É possível que para esse incômodo dos filósofos modernos tenha contribuído o particular estatuto semântico do termo "amigo". É notório que ninguém jamais conseguiu definir de modo satisfatório o significado do sintagma "eu te amo", tanto que se poderia pensar que este tenha caráter performativo - isto é, que o seu significado coincida com o ato do seu proferimento. Considerações análogas poderiam ser feitas para a expressão "sou seu amigo", mesmo se aqui o recurso à categoria do performativo não pareça possível. Ao contrário, penso que "amigo" pertença àquela classe e termos que os linguistas definem não-predicativos, isto é, termos a partir dos quais não é possível construir uma classe de objetos na qual inscrever os entes a que se atribui o predicado em questão. "Branco", "duro", "quente" são certamente termos predicativos; mas é possível dizer que "amigo" defina, nesse sentido, uma classe consistente? Por estranho que possa parecer, "amigo" compartilha essa qualidade com uma outra espécie de termos não-predicativos, os insultos. Os linguistas demonstraram que o insulto não ofende quem o recebe porque o inscreve numa categoria particular (por exemplo, aquela dos excrementos, ou dos órgãos sexuais masculinos ou femininos, segundo as línguas), o que seria simplesmente impossível ou, de qualquer modo, falso. O insulto é eficaz exatamente porque não funciona como uma predicação constativa, mas sim como um nome próprio, porque chama na linguagem de um modo que o chamado não pode aceitar, e do qual, todavia, não pode se defender (como se alguém insistisse em me chamar Gastone, sabendo que me chamo Giorgio). Isto é, aquilo que ofende no insulto é uma pura experiência da linguagem, e não um referimento ao mundo.
Se isso é verdadeiro, "amigo" compartilharia essa condição não apenas com os insultos, mas com os termos filosóficos que, como se sabe, não têm uma denotação objetiva, e, como aqueles termos, que os lógicos medievais definiam "transcendentes", significam simplesmente o ser. [...]
[Seguindo o desenvolvimento de Aristóteles, na Ética a Nicômaco] Os amigos não condividem algo (um nascimento, uma lei, um lugar um gosto): eles são com-divididos pela experiência da amizade. A amizade é a condivisão que precede toda divisão, porque aquilo que há para repartir é o próprio fato de existir, a própria vida. E é essa partilha sem objeto, esse com-sentir originário que constitui a política. [...].
(Giorgio Agamben, O amigo. In: ___. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. 5ª reimp. Chapecó: Argos, 2013. Trad.: V. N. Honesko, p.79-82).
* Com gratidão ao amigo Mauricio, por ter falado do livro com entusiasmo, por ter me levado à livraria e literalmente por ter me posto o livro às mãos. E, claro, por tudo que nos condivide.

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