é a imagem dela dentro de mim - essa memória frágil e amarelada - que me
dá força pra de vez em quando odiar. a imagem relampeja e logo se fixa
no céu da lembrança, feito a primeira estrela na noite nebulosa. ela no
chão. ela ajoelhada no chão de uma cozinha. ela e a bacia presa entre os
joelhos. ela e as mãos, incansáveis, virando e revirando a massa. a
massa de pão. o avental entre o colo e a bacia. e a massa virando e
revirando. ela está envelhecendo, mas é uma heroína pros meus olhos
infantis. ela e a amplidão de seu espaço. ela e a fazenda de rio gelado,
porcos gordos, mato farto. a mulher que no fim da tarde me ensina a
modelar a raiva: um quilo de farinha de trigo. três copos do leite gordo e forte que me salvou
os olhos quando, ingênua, achei que a pimenta guardava dentro de si o
seu ardido. uma colher de sopa de açúcar. dois tabletes de fermento
biológico. meio copo de manteiga. sal a gosto. a receita pra aplainar o
que farpeja por dentro. os cabelos loiros dela presos enquanto as mãos,
ágeis, virando e revirando a massa. ela vê meu olho espantado de criança
frente àquele estranho rito e me confidencia: é pra usar bem a fúria. e pára de virar e revirar para socar, bater, lançar plafts
a massa no solo duro da bacia. a imagem dela ecoando mais luminosa no
prateado do alumínio. a bacia inteira amassada. marcada pelo sem-número
de vezes que numa vida, numa vida de mulher, numa vida de esposa, numa
vida de mãe, fermenta-se o pão na ebulição do sentimento. ela é tão
bonita, assim sem contornos claros na minha memória. sinto falta dela.
então recupero, palavra por palavra, essa imagem. especialmente
quando eu também viva, uma vida de mulher, uma vida de esposa, uma vida
de mãe. fermentando o pão na quentura do sentimento. depois colocando
pra descansar a massa. e polvilhando de farinha a ira agora ovalada.
cortando xis antes de levar ao forno. depositando a raiva crua no
forno pré-aquecido e esperando crescer, crescer. e cozer. e dourar. e
por fim recolher ainda quente o milagre. ela de volta, quase viva
novamente. e então eu agradeço a ela, por ela. por saber o que fazer do
meu rancor. no pão ainda quente, a vida finalmente amansa. o búfalo alimentado se deita amplo e fecha os olhos.
eu era quase criança ainda quando aprendi a palavra vórtice. demorei para aprender seu significado.
ResponderExcluiro pão quando sai do forno é um contrário de vórtice e é quase vertigem.
linda essa receita de pão.