09 outubro, 2008

Delicadeza

Era esse o nome da conferência da Maria Rita Kehl que fomos assistir ontem.Eu nunca a tinha visto falando e gostei muito dela.


Como ela mesma disse, a delicadeza não é algo que seja possível abordar diretamente, sendo necessário realizar aproximações a fim de delinear alguns contornos sobre o tema do qual se fala.


Desde o início da fala dela, porém, ficou claro que ela estava tratando da delicadeza como algo que se contrapõe à velocidade e ao fluxo contínuo do tempo, que nos atropela e nos impossibilita fixar experiências. É à aceleração do tempo rumo a um futuro que nunca chega, portanto, que ela contrapõe a idéia de delicadeza.


Ao longo da fala, para evitar que se pensasse a delicadeza como um meio para atingir determinados fins, ela tentou marcar a delicadeza como efeito. Porém, em alguns momentos ela tratou a delicadeza como uma atitude, como a possibilidade de criar distância da correnteza da passagem do tempo. Eu, particularmente, gosto mais dessa maneira de entender a delicadeza.


Na verdade, me interessei em ouvi-la falar porque é um tema que também me é caro (a ponto do meu marido um dia ter sugerido que haveria uma ética no meu modo de me colocar no mundo baseada na delicadeza, que não tem nada a ver com “bonitinho” mas sim com algo que ele chamou de “beijar com socos”; assim como a Ju, que me disse que fiz da delicadeza a minha maneira de arregaçar às mangas e ir à luta).


Mas quero seguir na trilha aberta pela Maria Rita Kehl, da contraposição entre a delicadeza e o correr do tempo, que inexoravelmente nos leva em direção à morte.


É um tema sociológico clássico: a modernidade como a passagem do tempo cíclico para um tempo linear, contínuo e inteiramente voltado para o futuro porque ancorado na idéia de progresso. Está lá no Weber, por exemplo, a diferença entre o sentimento de plenitude da vida que pode ter um camponês e o sentimento de cansaço que pode ter um homem moderno, para quem nunca nada é suficiente.


Assim como está no Benjamin a figura do anjo que tenta inutilmente conter a tempestade do progresso, tentando olhar para trás e distinguir no passado os acontecimentos (já comentei aqui sobre essa leitura do Benjamin a respeito do quadro do Klee). Aliás, a Maria Rita Kehl se referiu ao Benjamin, dos textos “Experiência e pobreza”, “O narrador” e os comentários sobre Baudelaire.


Não vou conseguir escrever todas as dimensões que a fala dela me provocou a pensar, então vou ficar apenas com uma. Ela citou o Heidegger, num texto em que ele dizia da “necessidade de proteger a finitude” (ação que ela aproximou da idéia de delicadeza).


Ela tomou outro caminho em sua análise, mas eu fiquei pensando (e era essa a pergunta que eu ia fazer a ela, Maurice) se “proteger a finitude” não significa reinserir a morte do horizonte do tempo. É uma ação que pode ser pensada do ponto de vista individual, claro (e vou aproveitar aqui para fazer propaganda do lindo texto escrito pela Kalu, lá nas Mamíferas, que traz uma bela reflexão sobre as relações entre vida e morte) mas que também pode ser pensada do ponto de vista metodológico – sociologicamente, porque é esse o meu campo, mas acho que valeria para as Ciências Humanas em geral.


Como ultimamente eu tenho lido muito o Foucault, me impressiona na maneira que ele tem de pensar as coisas, esse esforço contínuo de des-naturalizar termos, categorias e formas que a gente acaba tomando por naturais. O Estado; o Poder; a Loucura... À essa “essencialização” dos termos e formas, ele contrapõe um “esvaziamento”, que implica em fazer uma história das relações que preencheram tais termos e formas de um certo sentido. Parece óbvio, mas, infelizmente, não é.


Talvez seja possível entender essa maneira de construir as questões, identificando problematizações, pensando a partir das crises e das impossibilidades que se tornaram possíveis, como uma maneira que se desdobra da inserção da morte e da finitude no horizonte do tempo. Ao invés de ver a continuidade de um Estado essencial, ele vai demarcando os acontecimentos que implicaram em transformação, em inversão, em ruptura ou descontinuidade em uma determinada arte de governar, que assim torna possível uma outra forma. Sob a mesma figura do Estado, tem-se portanto um outro conjunto de governamentalidades ou, ainda, uma nova articulação entre as governamentalidades que já existiam.


Sob a aparência de continuidade e progresso, a análise insere a possibilidade de compreender o fim de alguns mundos. O que, aliás, me lembra de um trecho de uma crônica do Drummond:


Não se sabe ainda se o mundo acabou realmente no sábado, como fora anunciado. Pode ser que sim, e não seria a primeira vez que isso acontece. A falta de sinais estrondosos e visíveis não é prova bastante da continuação. Muitas vezes o mundo acaba em silêncio, ou fazendo um barulho leve de folha. Tempos depois é que se percebe, mas já então vivemos em outro mundo, com sua estrutura e seus regulamentos próprios, e ninguém leva lenço aos olhos pelo falecido.


A inserção da morte no horizonte da vida, então, é uma posição analítica que abre espaço para que seja possível marcar a especificidade que subjaz à aparente continuidade. Não para levar lenço aos olhos, mas para "nomear as heranças" (se quiséssemos falar como a Hannah Arendt) ou para mudar o jogo estratégico (se quisermos falar como o Foucault).


Antes de terminar este post excessivamente auto-referido, queria só registrar que, depois de ouvir sobre o Heidegger e sua proposta de “proteção da finitude”, me pareceu ainda mais interessante que a Hannah Arendt (que foi aluna e amante dele) tenha feito uma reflexão tão interessante sobre “os novos começos”, isto é, sobre os momentos em que as possibilidades estão abertas e em que há espaço para inauguração de novas tradições. À inexorabilidade do fluxo tempo, ela contrapõe as promessas e o perdão, como ações humanas que subvertem – ela não usa esse termo, isso sou eu e a minha fixação pelo Octavio Paz – o fato de que o tempo não volta atrás e nem pode ser apressado.

Imagem: Patricia Metola, em http://tipika.blogspot.com/

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