Depois do último post, minha memória começou a funcionar e aí hoje de manhã me lembrei de um texto do Alfredo Bosi sobre mãos. Primeiro pensei que estava em "O ser e o Tempo na poesia", mas, quando procurei e não encontrei, percebi que se tratava de uma citação feita pela Ecléa Bosi, no
Memória e Sociedade - Lembrança de Velhos.
Então, abaixo parte da citação. Linda e cheia de poesia, como em geral são os escritos de ambos...
Antes, posso ter um momento tiete? No final de março, fui ao lançamento de um livro do José de Souza Martins e a Ecléa e o Alfredo Bosi estavam lá, junto com o neto deles. Quando cheguei, estavam todos conversando sobre netos e a experiência de ser avô/avó. Dali a pouco, o Alfredo Bosi comenta, despretencioso:
- Ah! Mas netos são a sobremesa da vida!
Como eu estava de fora da roda, fiquei lá sorrindo e saboreando a delícia da frase, tão simples e tão precisa.
No final do ano passado, pela primeira vez ouvi a Ecléa Bosi falando em um curso e também foi um troço de bonito - sua fala tão delicada, tão densa e tão cheia de poesia... Ela acabou de falar e eu lá, engasgada, olhos transbordando, tentando não dar muito vexame :-)
Mas vamos à citação, que serve de (longa) epígrafe a um capítulo entitulado "Memória do Trabalho":
"Parece ser próprio do animal simbólico valer-se de uma só parte do seu organismo para exercer funções diversíssimas. A mão sirva de exemplo.
A mão arranca da terra a raiz e a erva, colhe da árvore o fruto, descasca-o, leva-o à boca. A mão puxa e empurra, junta e espalha, arrocha e afrouxa, contrai e distende, enrola e desenrola; roça, toca, apalpa, acaricia, belisca, unha, aperta, esbofeteia, esmurra; depois, massageia o músculo dolorido.
A mão tateia com as pontas dos dedos, apalpa e calca com a polpa, raspa, arranha, escarva, escarifica e escarafuncha com as unhas. Com o nó dos dedos, bate.
A mão abre a ferida e a pensa. Eriça o pêlo e o alisa. Entrança e destrança o cabelo. Enruga e desenruga o papel e o pano. Unge e esconjura, asperge e exorcisa.
[...] Apanha com gestos o eu, o tu, o ele; o aqui, o aí; o hoje, o ontem, o amanhã; o pouco, o muito, o mais ou menos; o um, o dois, o três, os números até dez e os seus múltiplos e quebrados. O não, o nunca, o nada.
É voz do mudo, é voz do surdo, é leitura do cego.
Faz levantar a voz, amaina o vozerio, impõe silêncio. Saúda o amigo balançando leve ao lado da cabeça e, no mesmo acina, estira o braço e diz adeus, urge e manda parar. Traz ao mundo a criança, esgana o inimigo.
[...] A mão, portadora do sagrado. As mãos postas oram, palma contra palma ou entrançando os dedos. Com a mão o fiel se persigna. A mão, doadora do sagrado. A mão mistura o sal à agua do batismo e asperge o novo cristão; a mão unge de óleo no crisma enquanto com a destra o padrinho toca no ombro do afilhado; os noivos estendem as mãos para celebrar o sacramento do amor e dão-se mutuamente os anulares para receber o anel da aliança; a mão absolve do pecado o penitente; as mãos servem o pão da eucaristia ao comungante; as mãos consagram o novo sacerdote; as mãos levam à extrema-unção ao que vai morrer; e ao morto, a benção e o voto da paz. In manus tuas, Domine, commendo spiritum meum" (Alfredo Bosi, citado por Éclea Bosi. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.468-9).
A citação ainda segue, falando das mudanças nos usos das mãos com as invenções de máquinas, ferramentas e instrumentos, e mostrando como são justamente as mãos as que primeiro sofrem com a distração do homem frente à máquina: se poupam os músculos do trabalhador, o preço que cobram também é alto - dedos ou mãos decepados, acidentes de trabalho que marcam o trabalhador.
É que não quero fazer um post muito comprido, mas amanhã, quando for escrever sobre o nosso piquenique de hoje - no friozinho úmido que fez por aqui - acho que volto a falar sobre mãos e trabalho. A gente não chama assim mesmo, trabalho manual, a tudo aquilo que se faz de modo quase orgânico? Mexer, cavar, plantar, moldar, amassar, costurar, bordar, recortar? Pois então. Amanhã falo do piquenique, de cozinha e de trabalhos manuais. E também de tempo, vagar e herança.
* Título da citação de Alfredo Bosi no corpo do post.