28 maio, 2010

Amor

"Enfim, seria útil dispor de uma definição do amor.

Justamente, li nestes dias um livro que me tocou, "Éloge de l'Amour" (elogio do amor, Flammarion 2009, ainda não traduzido para o português), de Alain Badiou; é a transcrição de uma breve entrevista do filósofo francês.
Nela, inevitavelmente, Badiou constata que, em nossa cultura, a visão dominante do amor é a de uma espécie de "heroísmo da fusão" dos amantes, que, uma vez consumidos por sua paixão, podem sair de cena (para não se tornar ridículos) ou sair do mundo e morrer (para se tornar sublimes).

Contra essa visão, Badiou define o amor mais como um percurso do que como um acontecimento: segundo ele, o amor precisa durar um tempo porque é "uma construção".

Confesso que fiquei com medo de que o filósofo nos propusesse amores tagarelas, em que os amantes não parariam de discutir a relação (claro, para construí-la). Por sorte, não se trata disso. Então, o que constroem os amantes?

Geralmente, explica Badiou, minha experiência do mundo é organizada por minha vontade de sobreviver e por meu interesse particular: vejo o mundo só de minha janela.

Certo, ao redor de mim, há muitos outros de quem gosto e aos quais reconheço o direito de também sobreviver e promover seus interesses.

Mas o fato de eu respeitar esses meus semelhantes não muda em nada meu ângulo de visão. É só quando amo que consigo olhar, ao mesmo tempo, por duas janelas que não se confundem, a minha e a de meu amado. A estranha experiência ótica faz com que os amantes reconstruam o mundo, enxergando coisas que ficam escondidas para quem só sabe olhar por uma janela.

Entende-se que o amor assim definido exija tempo. Quanto tempo? Um mês, um ano, uma vida, tanto faz. Consumir-se na paixão pode ser rápido, mas reinventar o mundo a dois é uma tarefa de fôlego".


(Contardo Calligaris. A coragem do amor que dura).

25 maio, 2010

Pausa

Embora eu esteja bissexta, às vezes é bom avisar: hoje, só na semana que vem ;-)

Como aprendi com a Ana Lucia, que aprendeu com o Fernando Pessoa, enquanto isso, comam, durmam e não percam grammas.

21 maio, 2010

TPM


 Olha, vou dizer que não está fácil: essa TPM, misturada com a garoinha paulistana, me deixa à flor da pele, torna o que é casca uma superfície fininha e o mundo arrisca me invadir. O choro vem fácil, o salto no coração também, e mal dou por mim e meu corpo transborda. É tanta intensidade que quase não aguento. O mundo ora bonito e delicado e ora feio e violento. E no meio de tanta coisa imensa, a vida da gente fiando e desfiando. No meio de tanta coisa, as pequenas chances de interromper (Mauricio me contagiou...), de fazer brilhar no todo-dia e no mesmo essa coisa  preciosa e frágil: uma possibilidade.

Imagem: Ann Tarantino, Breath Portrait (blue and yellow pod), 2007.

19 maio, 2010

Besteirinha (2)

De novo, Lost. Tá acabando... Pra mim, ainda mais depois daquele intervalão que eles deram, demorou um pouco demais e perdeu o barato. Mas como a curiosidade matou o gato...

E aí, hoje, passeando por (já disse, procrastinação é meu segundo nome....), topei com esse vídeo, hilário. Com bônus do bonitão Esaú fazendo palhaçada ;-)


Aproveitando o momento besteirol, não me conformo que vão tirar o Castiel na próxima temporada de Supernatural. Não me conformo mesmo! Era o melhor personagem (vamos combinar que o último episódio da temporada deixou bem claros os limites do Sam para atuar em momentos dramáticos, né?)

Finalmente, outro comentário nada a ver, além de Lúcifer ser Jacob e o Guerra ser Esaú, Supernatural e Lost têm em comum essa problematização dos laços fraternos, né não?

15 maio, 2010

Estátua

"o passáro morto. como se enterra um pássaro? enterra-se um pássaro como enterramos os sonhos e os amores que não deram certo, como enterramos as palavras que nunca dissemos e cujo tempo passou e não volta mais? como fazemos com a esperança gasta, estúpida, andrajosa, puído o seu vestido verde, ou como lançamos à terra o gesto que guardamos nas mãos e não significa mais nada além de uma saudade? uma, duas, três, todas. meu deus, por que eu, justamente eu, que de todas as coisas que não sei fazer aceitar a morte é aquela na que sou pior? por que eu, eu que não termino nada, que jamais consegui dar um fim ao que quer que seja, que estendo os laços até esgarçá-los, que me agarro às histórias como se num naufrágio, que sou conhecida pela minha avidez por inícios e tenho plena convicção de que uma vez encontrado o amor, este amor eterno? e com tudo isso me lançam aos pés um pequenino milagre expirando, e não tenho outra saída a não ser fazer das minhas mãos em concha seu leito de morte, e é com violência que me obrigam a aceitar que ele se retire da vida, e, não satisfeitos, que isso eu assista, completamente impotente, e que seja eu quem o enterre e sozinha guarde um luto sem lágrimas, o pior. o passarinho extinguiu-se, nas minhas mãos fazia cada vez menos calor e minha boca foi ficando amarga e seca e meus olhos idem, idem. de lágrima nem arremedo - já me morreram tantos milagres que me obriguei a desaprender de chorar. defesa, covardia, estratégias de sobreviver. ou talvez tenha sido natural a secura, o processo de enrijecer. há muito sou feita de sal de tanto olhar pra trás, feita de sal mas andando, correndo, saudade do que fica para trás, eu me volto e olho, sempre olho, e a cada dia sou mais feita de sal, sou mais terra infértil, sou mais farsa, mais trapaça, eu que não aceito mortes e disfarço muito bem. de tanto olhar de volta me atraso e não importa qual revés, não me importam conselhos, tentativas de resgate, exemplos ou lições edificantes, eu faço o que quero, da maneira que me apraz: vou morrendo escondido, morrendo em silêncio, devagar, muito aos poucos, numa imitação de flor, de milagre ao contrário desistindo de voar".

14 maio, 2010

Inverno

Ultimamente, é só Tiê por aqui - over and over and over and over again...



É macio e doce: espalha pela alma feito camadinha de glacê.

12 maio, 2010

É pique-é pique- é piquenique!

Ainda que com bastante atraso, registro aqui um pouquinho do delicioso piquenique, que como eu já contei aqui e aqui, vai devagarinho se firmando como des-compromisso gostoso. E agora o piquenique tem blog próprio, com registros, receitinhas e ideias para quem também quer começar a fazer um Piquenique Perto de Casa!

O domingo amanheceu tristonho, naquele clima de antes-da-chuva que tanto me dói por dentro. Então, achamos que o piquenique tinha dançado - o combinado é o seguinte: não choveu, tem piquenique.

Mas aí, como a chuva estava indecisa, fiquei indecisa também e resolvi dar uma passadinha pela praça, para ver se alguém tinha se animado. Vi a Veronika e a Mônica dando voltas no coreto e então resolvi preparar as coisas para ir ao piquenique - em tempo: vendo a cena, achei que elas estavam procurando um lugar menos molhado para estender as toalhas, já que tinha chovido tanto no sábado. Só depois que descobri que todos estavam arrumando a bagunça que uma festa no dia anterior deixara; se soubesse, juro que tinha descido e ajudado :-)

Veronika, Neide e Mônica, enfrentando o tempo carrancudo 

Voltamos para casa e aí fui fazer os pães de queijo com o polvilho doce, enquanto Rodrigo e Edu amassavam um pão com uvas passas. Também resolvi fazer uma guacamole - ultimamente, vício por aqui.

Nessa brincadeira, levamos quase duas horas e aí, como a chuva continuasse ameaçadora, decidimos ir apenas com os pães de queijo e a guacamole mesmo, deixando a massa do pão com passas crescendo.

Guacamole, farta em cebola e coentro

Rodrigo, como sempre, estava animado para ir ao piquenique. Pôs suas botas vermelhas e seus binóculos, recusou o casaco - "eu não tenho frio, mamãe" - e logo se juntou aos meninos da Veronika para explorar a praça molhada. Como bem disse a Neide, crianças gostam de piquenique.

Exploradores: tudo vira brinquedo

E o fato é que o dia das mães foi delicioso, com conversas sem pressa, empadas abertas, bolo de maçã, biscoitinhos, saladinhas, suco de maracujá e vinho... O friozinho foi mais que equilibrado pelo quentinho que esses encontros esparramam por dentro - como bem disse a Mônica, o piquenique é encontro, é mudar a relação que temos com o entorno de onde moramos, é trocar receitas, mas também é cuidado e delicadeza com a praça, com os  demais piqueniqueiros, com as crianças que brincam  soltas no espaço e na imaginação.

Aqui em casa, o piquenique começa bem antes do domingo, na escolha do que preparar, no fazer das receitas, do sorriso sapeca do Rodrigo roubando massa crua de pão, no arranjar as coisas na sacola. E continua depois, na maciez que sucede os momentos que são plenos.

Os piqueniques têm sido pura partilha.

E a única coisa que me deixou triste neste último piquenique, depois de ver o post da Neide, foi perceber que perdemos a banana com paçoca ;-) Acho que esse é um dos cafés da manhã prediletos do Rodrigo: banana amassadinha com paçoca; eita combinação boa! E a ideia que ela teve, de fazer uns espetinhos, foi tão boa - ao ver as fotos, fiquei com água na boca!

Fotos: Neide Rigo.

10 maio, 2010

Desajeito


Porque tem dia que a gente se sente desajeitada, desengonçada, como se as partes do corpo tivessem todas se desconectado e um carinho sai a modo de tapa e um pedido de colo a modo de pontapé. Tem dia que a gente se sente inflar, sem razão ou biscoito mágico, e mal cabe no espaço de todo dia: ao invés de crescer para melhor se situar no mundo e alcançar a prateleira de cima, cresce pra se encolher nos contornos da moldura estreita, pra bater cabeça no teto e raspar os ombros no vão da porta. Tem dia, que dá vontade mesmo é de ser pequenininha e se esconder de tudo e todos - poeirinha, mosquitinho, ponto final.

Imagem: Cris Eich

09 maio, 2010

domingo à noite

Na hora do lanche, comendo frutas e o delicioso pão com uvas passas que Edu e Rodrigo fizeram de manhã (e não ficou pronto à tempo de levarmos ao piquenique), conversando muitas conversas com meu menino tagarela. Até que ele me diz:
- Vou te contar uma piada. Toc-toc.
- Quem é?
- A lagarta! E começa a rir muito...
Aí ele me dá uma tarefa:
- Mãe, agora conta três piadas.
Eu começo a pensar e ele esperando...
- Vai, mãe! Procura aí nas suas ideias!
Obediente, tô procurando, filho, tô procurando...

Os trabalhos da mão*

Depois do último post, minha memória começou a funcionar e aí hoje de manhã me lembrei de um texto do Alfredo Bosi sobre mãos. Primeiro pensei que estava em "O ser e o Tempo na poesia", mas, quando procurei e não encontrei, percebi que se tratava de uma citação feita  pela Ecléa Bosi, no Memória e Sociedade - Lembrança de Velhos.

Então, abaixo parte da citação. Linda e cheia de poesia, como em geral são os escritos de ambos...

Antes, posso ter um momento tiete? No final de março, fui ao lançamento de um livro do José de Souza Martins e a Ecléa e o Alfredo Bosi estavam lá, junto com o neto deles. Quando cheguei, estavam todos conversando sobre netos e a experiência de ser avô/avó. Dali a pouco, o Alfredo Bosi comenta, despretencioso:
- Ah! Mas netos são a sobremesa da vida!
Como eu estava de fora da roda, fiquei lá sorrindo e saboreando a delícia da frase, tão simples e tão precisa.
No final do ano passado, pela primeira vez ouvi a Ecléa Bosi falando em um curso e também foi um troço de bonito - sua fala tão delicada, tão densa e tão cheia de poesia... Ela acabou de falar e eu lá, engasgada, olhos transbordando, tentando não dar muito vexame :-)

Mas vamos à citação, que serve de (longa) epígrafe a um capítulo entitulado "Memória do Trabalho":

"Parece ser próprio do animal simbólico valer-se de uma só parte do seu organismo para exercer funções diversíssimas. A mão sirva de exemplo.
A mão arranca da terra a raiz e a erva, colhe da árvore o fruto, descasca-o, leva-o à boca. A mão puxa e empurra, junta e espalha, arrocha e afrouxa, contrai e distende, enrola e desenrola; roça, toca, apalpa, acaricia, belisca, unha, aperta, esbofeteia, esmurra; depois, massageia o músculo dolorido.
A mão tateia com as pontas dos dedos, apalpa e calca com a polpa, raspa, arranha, escarva, escarifica e escarafuncha com as unhas. Com o nó dos dedos, bate.
A mão abre a ferida e a pensa. Eriça o pêlo e o alisa. Entrança e destrança o cabelo. Enruga e desenruga o papel e o pano. Unge e esconjura, asperge e exorcisa.
[...] Apanha com gestos o eu, o tu, o ele; o aqui, o aí; o hoje, o ontem, o amanhã; o pouco, o muito, o mais ou menos; o um, o dois, o três, os números até dez e os seus múltiplos e quebrados. O não, o nunca, o nada.
É voz do mudo, é voz do surdo, é leitura do cego.
Faz levantar a voz, amaina o vozerio, impõe silêncio. Saúda o amigo balançando leve ao lado da cabeça e, no mesmo acina, estira o braço e diz adeus, urge e manda parar. Traz ao mundo a criança, esgana o inimigo.
[...] A mão, portadora do sagrado. As mãos postas oram, palma contra palma ou entrançando os dedos. Com a mão o fiel se persigna. A mão, doadora do sagrado. A mão mistura o sal à agua do batismo e asperge o novo cristão; a mão unge de óleo no crisma enquanto com a destra o padrinho toca no ombro do afilhado; os noivos estendem as mãos para celebrar o sacramento do amor e dão-se mutuamente os anulares para receber o anel da aliança; a mão absolve do pecado o penitente; as mãos servem o pão da eucaristia ao comungante; as mãos consagram o novo sacerdote; as mãos levam à extrema-unção ao que vai morrer; e ao morto, a benção e o voto da paz. In manus tuas, Domine, commendo spiritum meum"  (Alfredo Bosi, citado por Éclea Bosi. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.468-9).

A citação ainda segue, falando das mudanças nos usos das mãos com as invenções de máquinas, ferramentas e instrumentos, e mostrando como são justamente as mãos as que primeiro sofrem com a distração do homem frente à máquina: se poupam os músculos do trabalhador, o preço que cobram também é alto - dedos ou mãos decepados, acidentes de trabalho que marcam o trabalhador.

É que não quero fazer um post muito comprido, mas amanhã, quando for escrever sobre o nosso piquenique de hoje - no friozinho úmido que fez por aqui - acho que volto a falar sobre mãos e trabalho. A gente não chama assim mesmo, trabalho manual, a tudo aquilo que se faz de modo quase orgânico? Mexer, cavar, plantar, moldar, amassar, costurar, bordar, recortar? Pois então. Amanhã falo do piquenique, de cozinha e de trabalhos manuais. E também de tempo, vagar e herança.

* Título da citação de Alfredo Bosi no corpo do post.

07 maio, 2010

Mãos


Passei um tempão na fase de usar esmalte escuro: ameixa, jaboticaba, vinho reserva, havana... Em parte era uma questão prática, já que o único jeito de eu não roer as unhas era mantê-las pintadas de escuro, transparentes até à menção de colocar a mão na boca. Mas também era por gosto de tê-las coloridas e compridas.

Há umas três semanas que não quero saber de cor escura. Agora, tem sido um tal de renda, condessa, coral... E me lembrei da expressão "mão de noiva". Sabe? Quando a gente passa esmalte bem clarinho e delicado, típico de "mocinha". Ou "noiva". Ou "princesa" (nome, aliás, de um desses esmaltes claros que eu me recusei a comprar, confesso, só por conta do nome e aí troquei pelo condessa, que pelo menos é título de mulher poderosa com alguma liberdade pra fazer o que lhe dá na telha ;-). É todo um imaginário da feminilidade dócil e pura contido na expressão.

E aí lembrei ainda de outra expressão relacionada às mãos - "mãos de fada". Também é adjetivo de delicadeza e transcendência. A expressão foi quase motivo de uma briga entre uma amiga e eu, porque eu estava fazendo bolinhos de chuva e o moço de quem ela gostava 'garrou comer os bolinhos e dizer que eu tinha "mãos de fada". O Zé tinha dessas expressões antigas; acho até que ele mesmo sempre foi um menino antigo... E era o primeiro ano de faculdade, então tenho certeza que grande parte do sabor dos bolinhos vinha da ideia de lar que eles rememoravam - os tempos de criança que deixavámos definitivamente para trás...

Mas já estou começando a me perder. Estava falando das expressões ligadas às mãos e que "mãos de fada" é uma expressão que tem sua dimensão de milagre - quando alguém faz alguma coisa deliciosa ou bela, que transcende os ingredientes iniciais. Quem tem mãos de fada imprime magia ao que faz.

Tem também a expressão "mão de trabalhador", que deve ser calejada, típica de quem "põe a mão na massa" (outra expressão em que as mãos aparecem). Mão de pele fininha e tratada, unha muito limpa e cortada não pega bem: pode revelar preguiça ou vida mansa. O caráter se revela nas mãos, no sofrimento e nas marcas que o trabalho deixou impressas.

Como os olhos, as mãos são janela da alma. Mas enquanto os olhos observam e contemplam, as mãos agem, transformam o mundo - acarinham, amassam o pão, são estendidas ao céu, carregam bandeiras, ressoam melodias. Também podem lutar, ferir, destruir, fazer barulho. E podem simplesmente restar cruzadas. 

As mãos são portadoras da ação - transportam o pensamento ao ato ou, às vezes, se antecipam ao pensamento. Tateiam e modelam. Reconhecem e inauguram.

Imagem: M. C. Escher, tirado daqui.