15 maio, 2010

Estátua

"o passáro morto. como se enterra um pássaro? enterra-se um pássaro como enterramos os sonhos e os amores que não deram certo, como enterramos as palavras que nunca dissemos e cujo tempo passou e não volta mais? como fazemos com a esperança gasta, estúpida, andrajosa, puído o seu vestido verde, ou como lançamos à terra o gesto que guardamos nas mãos e não significa mais nada além de uma saudade? uma, duas, três, todas. meu deus, por que eu, justamente eu, que de todas as coisas que não sei fazer aceitar a morte é aquela na que sou pior? por que eu, eu que não termino nada, que jamais consegui dar um fim ao que quer que seja, que estendo os laços até esgarçá-los, que me agarro às histórias como se num naufrágio, que sou conhecida pela minha avidez por inícios e tenho plena convicção de que uma vez encontrado o amor, este amor eterno? e com tudo isso me lançam aos pés um pequenino milagre expirando, e não tenho outra saída a não ser fazer das minhas mãos em concha seu leito de morte, e é com violência que me obrigam a aceitar que ele se retire da vida, e, não satisfeitos, que isso eu assista, completamente impotente, e que seja eu quem o enterre e sozinha guarde um luto sem lágrimas, o pior. o passarinho extinguiu-se, nas minhas mãos fazia cada vez menos calor e minha boca foi ficando amarga e seca e meus olhos idem, idem. de lágrima nem arremedo - já me morreram tantos milagres que me obriguei a desaprender de chorar. defesa, covardia, estratégias de sobreviver. ou talvez tenha sido natural a secura, o processo de enrijecer. há muito sou feita de sal de tanto olhar pra trás, feita de sal mas andando, correndo, saudade do que fica para trás, eu me volto e olho, sempre olho, e a cada dia sou mais feita de sal, sou mais terra infértil, sou mais farsa, mais trapaça, eu que não aceito mortes e disfarço muito bem. de tanto olhar de volta me atraso e não importa qual revés, não me importam conselhos, tentativas de resgate, exemplos ou lições edificantes, eu faço o que quero, da maneira que me apraz: vou morrendo escondido, morrendo em silêncio, devagar, muito aos poucos, numa imitação de flor, de milagre ao contrário desistindo de voar".

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