23 dezembro, 2008

25 de dezembro de 1997

(Carta à Ana Lúcia)

Ana,

ao receber o seu lindo cartão de Natal, meu impulso foi escrever correndo a resposta. Mas tenho corrido tanto na ânsia de entender e sentir tudo que achei por bem esperar - resgatar a esperança. Deixei que meu autores me seduzissem, que me levassem, que me escolhessem, tudo para que a resposta pudesse se aproximar em sensibilidade a você, amiga tão querida e sábia. Hoje ouvi o Saramago dizer que as mulheres enxergam os homens, mas elas mesmas lhes são opacas. Ele atribui a sabedoria das mulheres ao diálogo que têm umas com as outras, quando compartilham suas experiências.
Pensei em você ao ouvi-lo, não só porque se tratava do Saramago, mas porque nossa amizade é um partilhar, é um diálogo. Ler e escrever suas cartas é um rito de encontro - com você e comigo. É o momento do esquecimento dos compromissos e preocupações que passam , é o momento de procura pelo que fica (e, como ensinou a Marilena Chauí, sempre fica o que significa).
E ficam a beleza e a tristeza que trocamos. Ficam as belas palavras, ficam as ilusões e as decepções. Fica a vida que se inscreve nas entrelinhas, a vida que vivemos e aquela outra, por vezes subjugada, que sonhamos.
E porque é isso o que fica, encontrei em Drummond as palavras que são o meu silêncio:

Amigo, não sabes
que existe amanhã?
Então um sorriso
nascera no fundo
de tua miséria
e te destinara
a melhor sentido.
Exato, amanhã
será outro dia.
Para ele viajas.
Vamos para ele.
Venceste o desgosto,
calcaste o indivíduo
já teu passo avança
em terra diversa.
Teu passo: outros passos
ao lado do teu.
O pisar de botas, outros nem calçados,
mas todos pisando,
pés no barro, pés
n'água, na folhagem.
Pés que marcham muitos,
alguns se desviam,
mas tudo é caminho.
Tantos: grossos, brancos,
negros, rubros pés,
tortos ou lanhados
fracos, retumbantes,
gravam no chão mole
marcas para sempre,
pois a hora mais bela
surge da mais triste.


Então, Ana, que andemos nossos passos, que caminhemos para o futuro, que não nos furtemos a viver, Que a cada ano possamos marcar o mundo com nossa humanidade porque são essas impressões - e não quaisquer outras - que significam. E por isso construir-se humano é se construir imortal, é continuar a viver nas marcas que deixamos; para que outros pisem o caminho, para que outros andem.
Para mim, o sentido do Natal é puramente religioso, é uma festa de muita alegria e um momento de muito louvor e agradecimento. É a comemoração do nascimento de um homem-deus que caminhou, marcou a terra com seus passos firmes e deixou sinais indeléveis do que significa ser humano - no sentido mais divino na palavra. E o final do trecho do Drummond bem poderia se aplicar à morte deste homem porque mais do que nascer, ele fez renascer. E nós, ainda que não acreditemos nesse mistério, também buscamos na tristeza a beleza necessária à ressurreição. "Fácil suicidar-se de vez. Difícil ressuscitar todo dia", (Ulisses Tavares).

Milhões de beijos,

com carinho,

Fabi

2 comentários:

  1. lindas, lindas palavras.
    doces, e doçura é tudo q ando precisando...
    :-)

    ResponderExcluir
  2. o google me trouxe e eu nem me surpreendi. já é natal de novo. e sempre este mesmo mistério de beleza. um beijo, v.

    ResponderExcluir