29 outubro, 2015

desertos

Foto: Mario Ruiz. (no El País Brasil)

que o deserto às vezes é só a espera da umidade. que demora, demora, demora. mas quando chega encontra as sementes mais-que prontas para a floração. e o deserto vira mar: horizonte de flor e cor. fluindo por entre as montanhas. convidando a gente a pegar uma folha, dobrar e dobrar e dobrar até voltar no tempo, em que qualquer papel virava chapéu e, mais umas viradinhas, um barco. convidando a gente a lançar o barco frágil nesse deserto mareado de flor, a flutuar como as últimas esperanças.
tenho certeza (escuto daqui.) que cada flor sussurra ao vento que trouxe a chuva: "you were three years of water" (nayyihra waheed).
parece o fim do mundo. parece o começo do mundo.

23 outubro, 2015

A Cozinha

(de Warsan Shire. Teaching my mother how to give birth. Tradução: Fabiana Jardim)

Meio papaia e uma palma de óleo de gergelim;
 ultimamente, a cabeça do seu marido tem estado em outro lugar.

Tâmaras, leite de cabra;
 você quer abrandar o inchaço de sal.

Coco e ghee;
 ele beija atrás do seu pescoço no fogão.

Pimenta caiena e alecrim;
 você não pergunta a ele o nome dela.

Folhas de uva e azeitonas;
 você deixa que ele te levante pela cintura.

Canela e tamarindo;
 te deite na bancada da cozinha.

Amêndoas mergulhadas em água de rosas;
 seu marido está faminto.

Mangas maduras e limão com açúcar;
 ele tinha esquecido o seu gosto.

Pão doce e cominho;
 mas ela não consegue fazê-lo comer, como você.

21 outubro, 2015

dois poemas doloridos

(tradução: fabiana jardim)

nossa tragédia começa úmida.
numa sala de aula úmida.
com um livro didático úmido.
irrompendo em nós.
roubando-nos de nós mesmos.
um poema. de cada vez.

começa com shakespeare.

a lavagem a quente.
o ácido frio. de
homens e mulheres brancos mortos.
pessoas.

cada um uma tempestade.

batendo. em nossas jovens
casas
tornando-nos ilhas. isolamentos
fáceis.
até que estejamos tão assediados e
feridos
por uma definição de poesia que
tem pele branca e
nós não.
que escondemos nossas escaldaduras. nossos
doloridos.
atrás de nós mesmos e
aprendemos
poesia.
como trauma. como violência. como
apagamento.
mais um lugar em que não existimos.
mais uma forma de exílio
em que deveríamos louvar. honrar
nossa própria inanição.
os pedacinhos de lagnston. phyllis
wheatley.
e
angelou durante o mês de história
negra. são as migalhas. são os
pequenos botes.
que nos oferecem parco descanso.

ser afogado na
rejeição das nuances do
meu próprio ser
explosivo
extraordinário.
e que isso
seja
chamado
educação.
tirar fora o nome do meu
nome.
fora de onde minha poesia nativa
vive. em mim.
e
substituí-la por keats. browning.
dickson. wolf. joyce. wilde.
wolfe. plath. bronte.
hemingway. hughes. byron.
frost. cummings. kipling. poe.
austen. whitman. blake.
longfellow. wordsworth. duffy.
twain. emerson. yeats.
tennyson. auden. thoreau.
chaucer. thomas. raliegh.
marlowe. burns. shelley. carroll.
elliot…

(qual a necessidade de uma criança
negra ser tão embriagada de
brancura)

e então. estamos aqui. bebês
negros. venerando. alimentando
o glutão que é a literatura
branca. mesmo depois de morta.

- lavagem a quente (de njema)

nossa amargura
pela
áfrica.
é
o coração
atrás
do coração.
a dor sem
nome.

- amnésia (de Salt)

13 outubro, 2015

associação livre

(embora eu já até tenha usado o truque de juntar Drummond com a Nayyihra...).

Do Drummond:
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amor inóspito, o áspero
Um vaso sem flor, um chão de ferro, e o peito inerte,
e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este é o nosso destino:
amor sem conta, distribuído pelas coisas
pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor
Amar a nossa mesma falta de amor,
e na secura nossa, amar a água implícita,
e o beijo tácito e a sede infinita.


Da Waheed:
you were three years of water.

De mim:
Fechou os olhos por um instante, atenta a ouvir o que lhe ia por dentro. Para sua surpresa, sem tantos suportes - os filhos, a casa, a vida em comum - a decisão corria caudalosa por suas veias. Doce, fresca e úmida em meio à correnteza, nem era frágil a decisão, mas inteira. Quando abriu os olhos, pela primeira vez em tanto tempo sorria de um sorriso sem sombras. Sentiu a vida amaciar em seda. Tão subitamente quanto o susto que a havia lançado ao deserto, podia enfim molhar os lábios. Os olhos. As mãos.

12 outubro, 2015

em tempos sombrios

(tradução apressada de fabiana jardim)

ponha um pouco de mel e água do mar
ao lado da cama.
reconheça. que sua existência
necessita doçura e ablução.
que ela está dolorida.
que você está. enfraquecido*.

- orixás

* podia ser também - uma vez que ainda não encontrei em português uma solução para o convívio desses dois significados simultâneos (e especialmente tendo em conta outros poemas e a importância que ela dá ao cultivo da umidade e do macio):
que você é. suave.

put some honey and sea water
by your bed.
acknowledge. that your being
needs sweetness and cleansing.
that it is sore.
that your are. soft.

- orishas

(Nayyhira Waheed. nejma)

05 outubro, 2015

a diferença

(tradução: fabiana jardim)

sou uma onda negra
em
um mar branco.

sempre vista
e
desvista.

- a diferença

---
i am a black wave
in
a white sea.
always seen
and
unseen.

- the difference

(Nayyirah Waheed. Salt).


02 outubro, 2015

campo de flores*

flower work
is
not easy.
remaining
soft in fire
takes time.

(Nayyirah Waheed. Salt).

* o título do post (já que o poema não tem título) roubei do Drummond. Que diz algo parecido: "de uma grave paciência ladrilhar minhas mãos...". Podia também chamar "o trabalho desses tempos".