Nas minhas lembranças de criança, as infinitas tardes passadas na piscina, do clube ou do prédio. Entre amigos, brincadeiras e conversas, no final do dia todas as luzes cintilando arco-íris - os olhos vermelhos, o corpo tostado e exausto. Era bom.
Quando fazíamos aulas de natação, era diferente. A escola imensa, várias piscinas. O fim de tarde raspando a noite, e a gente ali, a obedecer as instruções: não me lembro de nenhuma-nenhuma-nenhuma. A memória de tudo isso só nos músculos. O que lembro é só do gosto da sopa de caneca, pra esquentar a parada abrupta e o vento tomado no trajeto do portão até o apartamento. Depois de nadar e esquentar e esfriar, esquentar de novo. Bom.
Uma vez, numas férias, a menininha bem pequena descobria a própria respiração. Extasiada, chamava insistente a mãe para ver as bolhas mágicas debaixo d'água. A mãe nem-te-ligo, distraída na conversa. E todo aquele espetáculo submerso se desvelando sob os olhos da filha. Tão bom.
Quando voltei a nadar, foi mais por necessidade que por vontade - as costas fracas sucumbindo ao próprio peso, doendo dores intensas, que nem as agulhas do acupunturista conseguiam dar jeito. A água a me salvar do sangue fervendo poças em torno da agulha. Eu chegava cedo, 6h30 da manhã, e me lançava na água, ainda adormecida. Era bom aquele silêncio de braçadas, vai-e-vem, de luz suavizada pelo verde dos óculos... o corpo aprendendo a deslizar, mobilizando forças para vencer a voragem do afogamento. Muito bom.
Ultimamente, nadar é me enfrentar comigo mesma. Meu corpo que envelhece. Minha memória falha, que confunde as instruções do professor em meio à série de exercícios. Meu joelho dolorido. Minhas dificuldades em reunir as pequenas correções de cada aula em um novo movimento, bonito e confortável. É me sentir aprendendo - de novo ou finalmente - com a fluidez da água. É me sentir pedra, dura e pesada. É me sentir plena de ar: suave, leve. Sim, é bom.
* título da delicadíssima
graphic novel de Bastien Vivès (São Paulo: LeYa/Barba Negra, 2012).