o laço frouxo do tempo sem pressa me deu chance de achar o encontro dos meus sonhos: Bon Iver e The National juntos. porque boniteza pouca é bobagem :-)
Se te pareço noturna e imperfeita/ Olha-me de novo. Porque esta noite/ Olhei-me a mim, como se tu me/ olhasses. E era como se a água Desejasse/ Escapar de sua casa que é o rio / E deslizando apenas, nem tocar a margem. Te olhei. E há tanto tempo/ Entendo que sou terra. (Hilda Hilst)
23 março, 2013
08 março, 2013
criança de novo
Vai daí que a Tata escreveu um ótimo texto no Mamíferas sobre a leveza necessária para encararmos a vida e eu me lembrei da coleção Taba. Eis que por conta disso descobri que tem váários deles no youtube #fortesemoções.
E tava lá, uma das minhas histórias prediletas de quando eu era pequena: uma história de resistência, de insubordinação e de proposição de outros modos de viver. Então, nesse Dia Internacional da Mulher, vamos de Marinheiro Marinho - porque há várias formas de ser mulher, e ninguém é menos marinheiro por usar pintassilgo na cabeça :-)
05 março, 2013
pequeniníssima coleção de poesia feminista
(post descaradamente roubado de mim mesma, que ontem fui me meter a falar sobre gênero e cotidiano; a primeira parte foi sobre construções de gênero na publicidade dirigida ás crianças e essa segunda é que foi dedicada a essas experiências literárias de gênero).
***
Se a gente pensa as experiências de gênero como experiências
que constroem lugares de enunciação, que ensinam a ser homens e a ser mulheres,
e que ensinam práticas, delimitam papéis, circunscrevem o que falar, do que falar e
como falar, vale a pena tomar a produção poética – um tipo de experiência
literária que, em si mesma, já comporta alta dose de transfiguração e, desse
modo, de transbordamento dos limites da palavra – de mulheres que se “atreveram”
não só a escrever, mas a escrever poesia e, por meio de estratégias literárias,
a deslocar os “lugares” possíveis para as mulheres.
Estou aqui, seguindo a definição dada por Lúcia Helena
Vianna, chamando de poética feminista
[...] toda discursividade produzida pelo
sujeito feminino que, assumidamente ou não, contribua para o desenvolvimento e
a manifestação da consciência feminista , consciência esta que é sem dúvida de
natureza política [...], já que consigna para
as mulheres a possibilidade de construir um conhecimento sobre si mesmas
e sobre os outros, conhecimento de sua subjetividade, voltada esta para o compromisso estabelecido
com a linguagem em relação ao papel afirmativo do gênero feminino
em suas intervenções no mundo público” (Vianna, 2003).
Vou trazer aqui poemas de quatro poetas. Comparecem: Alice
Ruiz, Ledusha, Benédicte Houart e Adélia Prado. Quatro mulheres, quatro poetas
que são brasileiras ou escrevem em português, com histórias muito diferentes,
mas de quem podemos identificar algumas poesias feministas, isto é, alguns
poemas em que perscrutaram literariamente a possibilidade de transbordar os
limites de ser mulher.
Começo com dois poemas de Alice Ruiz, ambos de Navalhanaliga, livro de estréia em 1980. Ao final, ainda vou falar
de um outro poema dela.
Alma de papoula
Lágrimas para cebolas
Dez dedos de fada
Caralho
De novo cheirando a
alho
às vezes vem a certeza
a vida agora já foi
vivida
era uma vez uma menina
descobrindo a rotina
De Ledusha, contemporânea de Alice Ruiz, também dois, bem
curtos (e precisos e modernos):
De leve
feminista sábado
domingo segunda terça quarta quinta e na sexta
lobiswoman.
Deslavada
Meu querido Antonio
Não pude ir
Pneu furou
Não sei trocar.
De Benédicte Houart, poeta nascida na Bélgica e moradora de
Portugal, escreve em português.
são as mulheres que
fazem chorar as
cebolas
como se descascassem a
própria vida
e, arredondando-se
então, descobrissem
um corpo, o seu
uma vida, a sua
e, no entanto, nada
que de verdade
pudessem seu chamar
ou talvez sim, mas só
aquela gota de água
salpicando
um canto do avental
onde
desponta uma flor de
pano colorida que
ainda ontem ali não
ardia
e
já penélope não sou
nem ulisses regressa
mudo de nome noite
a noite ao sabor da
saliva
dos meus amantes
de dia troco lençóis
coso bainhas
descanso os olhos
dantes tecia para
enganar a corte que
me servia de prisão
agora chamo-me eu
não tenho estado civil
e
na cela que me tem
cativa
tornei-me finalmente
livre
Finalmente, e para ilustrar melhor o ponto de transgressão
ou ultrapassamento dos limites de gênero que essas mulheres constroem por meio
da linguagem, queria trazer dois últimos poemas, um de Alice Ruiz e outro de
Adélia Prado, ambos referidos a um poeta famoso, Carlos Drummond de Andrade. Primeiro, Drumundana, de Alice Ruiz, que dialoga com o poema
“E agora, José?”.
e agora maria?
o amor acabou
a filha casou
o filho mudou
teu homem foi pra vida
que tudo cria
a fantasia
que você sonhou
apagou
à luz do dia
e agora maria?
vai com as outras
vai viver
com a hipocondria
E, finalmente, “Com licença poética”, da Adélia Prado, que
dialoga com “Poema de sete faces”, do mesmo Drummond.
Quando nasci um anjo
esbelto,
desses que tocam
trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra
mulher,
esta espécie ainda
envergonhada.
Aceito os subterfúgios
que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não
possa casar,
acho o Rio de Janeiro
uma beleza e
ora sim, ora não,
creio em parto sem dor.
Mas o que sinto
escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens,
fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem
pedigree,
já a minha vontade de
alegria,
sua raiz vai ao meu
mil avô.
Vai ser coxo na vida é
maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.
Referências
Bibliográficas
Murgel, Ana
Carolina Arruda de Toledo. A poética feminista em Alice Ruiz, Ledusha e Ana
Cristina César. In: Rago, Margareth (org.). Revista Aulas, Dossiê Estéticas da Existência, 2010, p.25-39. Disponível aqui.
Vianna, Lúcia
Helena. Poética feminista, poética da memória. Labrys, estudos feministas, nº 4, agosto/setembro de 2003.
Disponível aqui.
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Ruiz: Alice
02 março, 2013
(contraponto)
alma de papoula
lágrimas
para cebolas
dez dedos de fada
caralho
de novo cheirando a alho
(Alice Ruiz, Navalhanaliga)
01 março, 2013
mais receitas vegetarianas - feridologia
Nem achou que estava distraída até que a dor fininha a acordou. Largou a faca sobre a tábua, ali mesmo por cima dos tomates, e trouxe o dedo para perto dos olhos. O corte tão fino e fundo que o sangue demorou a vir à tona, chegando manso: córrego desaguando lentamente. Enrolou um papel toalha, apertado firme, e retomou o trabalho.
Cortava os tomates grosseiramente e ia colocando no liquidificador.
Todos os doze tomates – a explosão de vermelho respingando no papel toalha,
manchando a tábua e o avental.
A família inteira reunida na sala. Os filhos, a nora e o novo
genro. Os netos – o menorzinho ainda de colo, enquanto o mais velho já
adolescente, o cabelo comprido e meio ensebado, o desajeito de pernas e braços
que se acomodavam mal na poltrona da sala. E o marido, lembrou com um
imperceptível esgar.
Dos trinta anos de casados, há vinte e cinco ela sabia. “Não
suporto a companhia do meu marido”, ouviu-se dizer. Primeiro para si mesma, bem
baixinho, nos primeiros anos de casamento, num dia em que ele – como sempre –
não quis saber de ir com ela ao almoço na Paróquia. Então para a amiga querida,
alguns anos depois, explicando porque estava indo para a praia só ela e os
filhos. De lá pra cá, pra quem quisesse ouvir, que já estava mais velha e não
tinha pudor: não suportava, nunca suportara a companhia do marido. E em vez de
doer, a constatação agora lhe acalmava, pois passados tantos anos, já não
provocava dentro dela nenhum ímpeto de ir embora, nenhuma pena de sua sina.
Nada. Era como abrir a janela e anunciar o tempo.
Pegou os pepinos, cuidando de tirar a casca, que a filha
passava mal, tinha pesadelo depois. Desde pequena era assim. Jogou os dois no
liquidificador, fazendo o vermelho eclodir ainda uma vez.
Na sala, conversas e risadas entremeavam o programa de TV.
Era um domingo bonito, o céu azul sem nuvens e sem vento.
Tirou a casca para descobrir o roxo da cebola. Foi quando
viu o vermelho transbordando a brancura do papel toalha. Droga!
Pensava nele quando o corte a interrompeu. No bom que era a
sua presença. No bom que era o cheiro dele, logo de manhã, quando se
encontravam ao chegar no trabalho. Na textura da voz dele quando disse que a
queria e no oco do silêncio dele quando ela disse não. A vida era mesmo engraçada,
latejou.
Achou no armário do banheiro uma gaze e tornou a enrolar o
dedo, ainda mais firme, os esparadrapos ajudando a contenção.
Suspirou. Pegou os pimentões coloridos, o verde, o amarelo,
o vermelho. Achava graça na leveza deles, tão amplos e plenos de vazios. Não
gostava muito. Mas cortava, metade de cada um, e lavava e tirava as sementes e
lavava de novo e cortava fatias grossas antes de jogá-las também no
liquidificador. Tudo se misturando no mar de vermelho.
Pensar nele já não era atirar uma pedra pesada na água. Ele
ficara lá, em outro lugar, no passado, num futuro que não foi. Ela disse não,
ponto final. E ele então mudou de emprego, de cidade, talvez até de país. Sumiu
no mundo, a não ser por aquela cicatrizinha dentro dela, que ela via sempre
quando um espelho refletia sua imagem – ele era aquela espécie de infelicidade gravada
no fundo do seu olho. Não se arrependia, era o que dizia a si mesma. Fizera o
que era certo e o que era certo era ficar ao lado do marido, ter e cuidar dos
filhos, vê-los crescer.
E picar o alho, com o dedo estendido a se esquivar do
contato, porque alho cutuca a ferida, dá a medida da fundura do corte. Lembrava
da mãe dizendo que alho era antibiótico, recomendando chás nos resfriados e abaixando
a voz para receitar o remédio certeiro para as coceiras lá embaixo durante e depois da gravidez. Alho curativo, não sem
antes levar a dor até o fim. Era domingo, um dia santo, as coisas no lugar: não
precisava ampliar nenhuma dor.
Colocou o alho no liquidificador, junto com o copo raso de
azeite e dois copos de água. Também um pouco de sal, que se misturou à umidade
e fez o corte arder. Droga!
Bateu tudo, fazendo um barulho que fez um dos netos vir à
cozinha e anunciar que fecharia a porta por uns minutos. Suspirou. Viu o que
era vermelho vivo empalidecer em rosa. Depois peneirou o gaspacho, cantarolando
uma canção antiga, de peneiras e namoros e saias voando ao vento. O que era massa
grossa virando creme suave, sem coágulos.
Picou o pão amanhecido, jogou na frigideira, deitando por
cima um pouco de azeite e sal. Ainda lavou a salsinha, picou bem fininho, pra
enfeitar e dar sabor na hora de servir.
Tirava o curativo para cuidar da louça, enquanto a filha
abriu a porta e reclamou dos pimentões em cima da pia “mas mãe, você colocou
todos esses pimentões no gaspacho? Assim não vou poder nem experimentar!”.
Estava distraída mesmo, para lembrar de tirar a casca do pepino e esquecer tanto
de tirar a dos pimentões quanto de diminuir a quantidade prescrita na receita.
Desculpou-se, em palavras e ombros.
A ela também os pimentões não faziam bem, a digestão
atrapalhada, lenta, feito nó na garganta, borboletas no estômago. Foi o que lembrou, já à hora da mesa,
quando sorvia a segunda colherada.
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