ele é pequenino, só sete quilos. onze meses. está com a gente há menos de quinze dias. era medroso, se encolhia na calçada ao ouvir um carro ou outro cachorro. mas agora é um pouco menos. é valente quando se trata de espantar a assustadora máquina de lavar roupas ou o tenebroso aspirador de pó. dorme de barriga pra cima de modo a dar sentido à palavra "abandono". puxa os panos da casa pra sua cestinha, sem se importar com nada nem ninguém. bebe muita água. faz muito xixi. quando leva bronca, corre pra caminha, deita e esconde os olhinhos com as patinhas brancas. ele é grisalho, mesmo sendo criança. de roupa azul, é o vira-lata mais lindo desse mundo. a gente se escolheu e eu não consigo mais imaginar um dia-a-dia sem ele. suas patinhas pela casa fazem a palavra "companhia" ser feita de som. faz uns dez dias que entendi a clarice ainda melhor: bem poucas coisas valem mais que um cachorro vivo.
Se te pareço noturna e imperfeita/ Olha-me de novo. Porque esta noite/ Olhei-me a mim, como se tu me/ olhasses. E era como se a água Desejasse/ Escapar de sua casa que é o rio / E deslizando apenas, nem tocar a margem. Te olhei. E há tanto tempo/ Entendo que sou terra. (Hilda Hilst)
19 outubro, 2012
18 outubro, 2012
em loop
Bon Iver. Em loop, para amansar as violências de estar vivo.
17 outubro, 2012
três receitas vegetarianas - festa
Depois de tantos anos de idas e vindas, de distâncias e
aproximações tateantes, finalmente chegaram ali. Aqui, melhor dizendo: aqui
nessa cidade, nesse bairro, nessa casa. Aqui, um frente ao outro.
Os quarenta anos derretidos em vinte, feito o alho-poró que
começava a fritar no azeite e espalhava um cheiro bom de tempero e mato pela
cozinha. “Mas você já fez essa receita antes?” ele desconfiou, com medo que o
trabalho fosse maior que o esperado. “Nunca fiz, mas já comi”. “E adianta,
saber o final?”. “Bom, é mais fácil que não ter menor ideia de como as
coisas devem parecer...”, sorriu, pensando agora não no sabor do prato mas nos
casamentos anteriores – o dele, o dela. Ele, porém, falando só da comida.
Taça de vinho na mão, ele estava em pé ao lado dela,
rodeando a bancada onde descansavam a couve-flor, a vagem cortada grosseiramente,
o pimentão amarelo e os palmitos de pupunha, luas cheias naquele céu de
picadinhos. Entre o morno que emanava do fogão e a respiração dele, também
morna, sentia-se amparada: naqueles parênteses de quentura e aconchego cabia um
infinito.
“O pimentão não devia ser verde ou vermelho? Amarelo na
paella vai ficar apagadinho...”, ele palpitou. Ela sorriu antes dizer “pode até
ser, mas pimentões verdes e vermelhos não me fazem bem, são fortes demais, só
consigo comer se tirar a casca, aferventar... até gosto, mas nessa altura da
vida, só quero o que me vai bem”. De novo, não sabia bem se estava falando da
comida ou daquela novidade de tê-lo ao lado todos os dias e noites, nos dias
úteis e finais de semana, na rotina e nas férias. Sentiu-se de um só golpe
sábia e velha – a recusar a festa completa por pura preguiça.
“Já tem as vagens e as ervilhas: acho que não atrapalha a
paleta de cores...”, desconversou, jogando os legumes, as ervilhas frescas e o pimentão na
panela. E a cozinha ficou inteira perfumada de intensidades. Enquanto isso, pegou
os tomates já lavados, pelados e sem sementes e os passou pelo processador.
Também pegou a água fervente da chaleira elétrica e jogou na pequenina
caçarola, sobre o caldo de legumes congelado.
Cutucou a couve-flor e a vagem, a ver se já estavam macias,
mas ainda não. As coisas têm seu próprio tempo, não adianta a nossa vontade. “Minha
avó sempre vinha com um o apressado come
quente e cru quando a gente circundava a panela com nossa gula”, contou. “A
minha também falava algo como isso. Os adultos, desde sempre a tentar domar
nossas voragens”, ele filosofou, servindo-se de mais um pouco de vinho.
Jogou finalmente as grandes rodelas de pupunha,
não sem antes quebrar uma no meio e dividir com ele – espécie de comunhão. Mal
acreditando no coração disparado no simples gesto, na ternura borbulhando perigosa feito a fervura do caldo de legumes enquanto passava a mão no rosto
recém-barbeado. Quarenta anos e a meninice recém-descoberta.
Virou-se ligeira, numa desconversa de corpos, e jogou o
caldo sobre os legumes. Também um bocadinho de sal, um bocadinho de pimenta.
Cuidadosa, abriu no centro um espaço para mais azeite, o alho bem picadinho a
dourar. Então a páprica, o tomate, o açafrão. A colorir o já colorido,
reforçando tons, descobrindo matizes. Inaugurando o novo no familiar.
“Paella é uma comida tão simples e tão elaborada, né?”, ele mapeou
o caminho de seus pensamentos enquanto ela colocava o arroz na panela. E era
mesmo: arroz, legumes, grãos. Mas os cheiros e cores, tão diversos do nosso tododia,
a prometer ocasião especial. Ela jogou ainda um raminho de alecrim fresco e
colocaram-se a esperar, a conversa cheia de pausas e silêncios, cuidadosa como o cozinheiro diante da receita nova.
Meia hora depois, o
limão siciliano ainda com a casca amarela a espalhar seus gomos por entre a
panela. “Era esse o prato que você imaginava?”, ele perguntou. “É um pouco
diferente”, confessou diante daquela imensidão de amarelo pontuada de verde e
branco. Sentaram-se à mesa, experimentando em pequenas garfadas. “É um pouco
diferente”, ela disse de novo, “mas ainda assim bom”.
Aqui, agora mesmo – o pequeno rito a prometer um para
sempre.
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12 outubro, 2012
três receitas vegetarianas - veludo
para Veronika
Era nas tardes de domingo, aquelas tardes quentes e densas,
o céu azul sem nuvens esticando sobre o tempo sua colcha de infinito. Era
nessas tardes de domingo que doía mais. Doía tanto e tão fundo que às vezes era
difícil caminhar. Mais um domingo em que acordava sem ele, que descia as
escadas sem ele, em que era ela mesma a colocar na cafeteira o filtro, o pó, a
água. E ele fazia falta em cada brecha entre os gestos, de modo que ao final de
meia hora estava já exausta.
No quintal, o cachorro dormindo atento, fazendo menção de se
aproximar ao mínimo sinal de atenção. Já o filho, desde sempre silencioso, sem
vontade alguma de chegar perto. Pra ele também doía, ainda que ele cerrasse o
queixo bem forte e represasse a enxurrada de lágrimas no fundo da pupila negra.
Naquele domingo, enquanto ela acabava de lavar a louça do
café, o filho veio espiar a geladeira apesar da falta de vontade de comer.
Abriu, fechou. Olhou na fruteira, voltou a abrir a geladeira. Inquieto. Até que
comentou “mas pra que tanta maçã?”.
Surpresa, veio de luvas e espuma nas mãos verificar. Contou
três sacos de maçã, de diferentes feiras. Talvez um deles ainda tivesse sido
comprado por ele, pensou e doeu entre a constatação e a decisão. Deixadas ali,
iriam estragar. Que agora eram dois, só os dois, a comer as frutas no café da
manhã ou depois do almoço.
“Acho que vou fazer
uma torta de maçã”, finalmente pensou em voz alta, e o rosto do filho se
iluminou em vontade. “Posso ajudar?”, ele perguntou e ela aceitou, oferecendo a
ele uma cadeira para que a tarefa de lavar com cuidado as maçãs ficasse mais
fácil.
Tirou a manteiga da geladeira, viu se tinha iogurte
natural... Pegou a cerâmica branca e foi colocando, sem medir. Primeiro pouco mais de meio tablete
de manteiga, que foi cortando em cubos e fatias. Depois o mesmo tanto de farinha, que
resolveu peneirar para que o ponto ficasse mais fácil – foi então que se deu
conta, sem pensar, que estava a desejar um domingo sem coágulos. Pôs as mãos na
tigela e começou a misturar.
Na bancada, o filho esfregava as maçãs para depois secá-las,
caprichoso.
Ainda na tigela, colocou uma colher de sopa iogurte natural
e uma colher de chá de fermento químico. E então passou a contar as dez
colheres de água. Uma, duas, três, quatro... sempre perdia a conta. Continuou a
misturar a massa, sentindo o gelado do iogurte indeciso em se dissipar. Já nem
se distinguiam mais os ingredientes, mas a ponta dos dedos sabia que ele estava
ali, sem se decompor. Feito memória que mina água mansa nas brechas da vida a
continuar.
O filhou acabou de lavar as maçãs e se cansou da ajuda. Foi
para a sala, assistir tv.
Ela ficou ali, esticando a massa, colocando farinha, no
esforço de esticar sem esgarçar a massa. Doía um pouco menos ver-se outra:
massa fina e podre a procurar as bordas sem se rasgar. Não era mais ela mesma a
se alongar cotidianamente, a tentar cobrir o buraco que ele deixou. Era só a
massa, a massa de uma inesperada torta de maçã.
Abriu o armário para buscar o leite condensado. Pôs sobre o
fogão a caçarola, a colher de pau atravessada, e a lata de leite condensado a
escorrer. Pensou em chamar o filho, para ver se ele queria raspar o fundo, mas
lembrou de um corte na mão e desistiu. Na geladeira, pegou o leite e os ovos.
Uma lata de leite. Duas gemas, para o creme ter cor. Duas colheres de sopa de
maisena. Mexeu bem antes de ligar o fogo – não queria nada empelotando, só a
maciez do creme. “Creme veludo”, dizia a receita da avó. Sim, era
de um pouco de veludo que precisava. O veludo da companhia dele, da quentura da
sua presença macia. Mas tinha que se contentar com o doce na caçarola.
Mexeu bastante, até engrossar. Enquanto o creme esfriava,
pôs-se a cortar as maçãs em meia-lua: tirou as sementes, cortou as fatias
finas, jogou algumas gotas de limão para atrasar a oxidação.
O filho apareceu para roubar umas fatias, mas não se
interessou em ficar. “já vai ficar pronto?”, mas a resposta negativa o levou de
volta à sala, dessa vez para um desenho colorido.
Assou a massa até dourar. E quando o creme estava frio,
colocou as duas gotas de baunilha e a lata de creme de leite, sem soro.
Misturou bem, regozijando-se na textura lisa e amarelada. Na panela, a vida era
macia e sem tumores.
Suspirou demoradamente antes de pegar a travessa com a massa
e despejar, pão-duro em punho, o creme amarelado até quase as beiradas. Por
cima, arranjou delicada as fatias finas de maçã, concêntricas. E só então se
lembrou da cobertura, então correu para espremer duas laranjas e leva-las ao
fogo com duas colheres de maisena. Ufa! Caldo engrossado, despejou-o sobre a
torta, as meias-luas eclipsadas de laranja, já começando a cozinhar antes mesmo
de entrar no forno.
Quantos anos não fazia aquela torta. Nos vinte anos que
viveram juntos, nunca. Não era nem o trabalho, mas o medo de errar o ponto do
creme, de servir as maçãs dançando soltas no branco aguado. Hoje, porém, o
creme no ponto em poucos minutos. Agora, porém, o arrependimento até pelos
erros não cometidos.
Depois do jantar – o dia chegando ao fim e a ilusão de
eternidade dos domingos a se romper – ela e o filho inaugurando a torta. Meio a
medo, o filho afirma “dessa torta o papai ia gostar”. O peito encharcado
transbordando no olho enquanto corta o segundo pedaço. “Ele ia, não é?”. A
torta derretendo na boca feito a vida no correr tempo.
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04 outubro, 2012
seguro
não vai doer? vai passar? vai durar? não vai quebrar? você me garante? eu vou gostar? não vou me arrepender? não sei porque a gente insiste em querer garantia, a comum ou a estendida. se quando decide, já pulou da plataforma, já se encontra em pleno ar. adianta nada essa precaução depois que se decidiu. decidir revolve a gente, às vezes abre espaço, outras, um buraco. faz escorrer, vezemquando mel, vezemquando sangue. essa coisa que é viver a despeito de toda ilusão de seguro.
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