sempre está lá quando eu chego, acompanhando o marido. não sei direito que tratamento ele faz, mas ela, infalível, lendo enquanto espera. hoje, o chumbo do céu prestes a desabar e a tristeza também, mal contida e querendo escorrer. comento o resfriado, a falta de voz durante o feriado, e do tempo enlouquecido e não-cíclico passamos aos sentimentos enlouquecidos e sem tempo para serem cíclicos. que ontem teve um tempo só para si mesma e chorou sem estancar. que o marido se operou há oito meses e nunca mais foi o mesmo. que se recusa a sair, passear, fazer-lhe companhia enquanto ela desfia a conta dos dias de intenso cuidado. que ele só quer dormir. que ela desejaria acordá-lo mesmo que aos trancos, para rever o homem com quem casou (isso ela não fala, mas eu escuto). que a filha, consoladora, lhe escreve que deus não dá cruz maior que possamos carregar e ela se dói em reconhecer no marido um peso e chora mais, agora a culpa misturada ao cansaço. que o marido nunca parava e tinha medo do que aconteceria à família caso faltasse e que agora ela já sabe que pode sobreviver, mas não quer mais sentir essa falta (isso também, ela não diz, embora se ouça). parco conforto, conto-lhe histórias semelhantes para que se sinta menos só. ela, ele, subitamente minha avó, meu pai, minha amiga querida, eu mesma. ela, nós, e nossa dificuldade de parar, nosso medo de envelhecer, nosso teimoso apego a certa imagem de nós mesmos. ela fala e eu escuto, preenchendo entrelinha por entrelinha. até que a porta do consultório se abre, o marido chega e ela reencontra a energia que buscava no gole de café para ampará-lo na saída. tchau, boa semana. oxalá seja mesmo, boa e límpida, a próxima semana.
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