Depois de ter escrito o último post (e de ter revisto o filme e escutado a trilha do Les chansons d'amours incontáveis vezes), fiquei pensando no amor e na solidão. Parece um pouco cinza dizer assim, como se eu andasse triste ou melancólica, mas não é bem isso: é mais um exercício de pensar que a beleza do filme se produz bem nesse interstício entre um amor duradouro, com todos os seus problemas, e certa solidão que nem mesmo a companhia parece fazer desaparecer. Ainda assim, se alguma chance de escapar existe, a aposta é ainda no amor - na presença de outro, que nos ama e a quem amamos, que nos toca, nos abraça, que modifica o mundo ao enchê-lo de sinais.
E depois de rever o filme, pensei também no conto-novela do Caio Fernando Abreu, "Pela Noite" (Estranhos Estrangeiros: São Paulo, Companhia das Letras, 2002), de que gosto tanto e que fala também de modo tão dolorido sobre desencontros e sobre a graça do encontro - reconhecimento e mergulho cego no outro, no corpo do outro. E que armadilha que, como nós, o outro também tenha um corpo por continente, um corpo vivo que pulsa, sangra e goza, mas que também muda de ideia e parte ou, exagero de abandono, morre.
Com todas essas coisas na cabeça, ainda fui ler O fuzil de caça, de Yasouchi Inoue. Quem me falou do livro havia mesmo comentado sobre a excessiva solidão da personagem, mas é realmente impressionante como Inoue - ao lançar mão das cartas para contar a história - nos coloca em uma posição de solidão parecida à de Josuke Misugi. Como a personagem, ficamos na mesma posição de ler e aceitar as decisões de três mulheres importantes em sua vida, que ao mesmo tempo em que escrevem para ele, escrevem apesar dele, escrevem para se livrar dele. É tão triste e tão exato que a personagem principal quase não apareça, senão do modo como as três mulheres o pronunciam.
O livro é de 1949 e os ecos da experiência da II Guerra aparecem aqui e ali. Não apenas por isso, me fez lembrar, embora não imediatamente, do livro de Graham Greene, Fim de Caso. O livro de Greene é de 1951, e acabei me lembrando dele principalmente por conta de um elemento que - para mim - pareceu bastante estranho na narrativa de Inoue: a presença da ideia de pecado.
A indicação do livro de Inoue me foi feita em meio a uma conversa sobre literatura japonesa e também em meio a um comentário sobre o estranhamento provocado, numa mesa sobre desemprego e experiências de desempregados, pela apresentação de pesquisadores japoneses que apontavam a centralidade do sentimento de vergonha para a compreensão das experiências subjetivas dos desempregados japoneses. Participando da mesa, havia finlandeses, alemães, suecos... e eles eram visivelmente incapazes de compreender que fosse possível alguém sentir vergonha; culpa, certamente, mas vergonha? São matrizes de codificação moral bastante diferentes.
Por isso me espantou tanto a sedução que a ideia de pecado assume na narrativa de Inoue - algo que agrega ao "erro" o peso do segredo. O interessante é que é uma ideia de pecado ela mesma estranha (para nós, ocidentais), pois que à revelação não sucede nenhuma salvação; à revelação parece suceder a súbita compreensão justamente da inadequação da própria sensação de pecado. O peso não vai embora devido à algo como uma expiação, mas porque é o próprio pecado que se dissipa.
A solidão, no romance de Inoue, parece vir do oco dos rituais, símbolos e códigos. A distância irremediável a que todos os personagens estão submetidos, em relação uns aos outros, marca um absoluto desencontro. E aquilo que podia assumir o caráter de ponte - as cartas honestas e claras dirigidas à Josuke Misagi - revela uma ruptura ainda mais intensa, dando realidade a uma solidão que já se inflitrava pelos poros daquela vida.
Muito diferente, portanto, da tensão e da angústia de Fim de Caso, em que o pecado nunca pode ser expiado, mas é amenizado por meio de uma distância artificialmente criada: solidão auto-infligida e imposta ao outro, visando uma salvação absolutamente mundana. O que diferencia radicalmente os dois livros, além dos sentires de raízes tão distintas, sem dúvida é a ideia de Deus - aceita como milagre ou recusada como absurda e sem sentido - presente em Fim de Caso. Em comum, além da época sombria em que foram escritas, ambos podem ser reflexões sobre solidão e amor, sobre essa espécie de inescapabilidade (existe essa palavra horrível?) da solidão e sobre as promessas e limites do amor para cutucar rachaduras onde a saída se reveste de pedra.
O livro é de 1949 e os ecos da experiência da II Guerra aparecem aqui e ali. Não apenas por isso, me fez lembrar, embora não imediatamente, do livro de Graham Greene, Fim de Caso. O livro de Greene é de 1951, e acabei me lembrando dele principalmente por conta de um elemento que - para mim - pareceu bastante estranho na narrativa de Inoue: a presença da ideia de pecado.
A indicação do livro de Inoue me foi feita em meio a uma conversa sobre literatura japonesa e também em meio a um comentário sobre o estranhamento provocado, numa mesa sobre desemprego e experiências de desempregados, pela apresentação de pesquisadores japoneses que apontavam a centralidade do sentimento de vergonha para a compreensão das experiências subjetivas dos desempregados japoneses. Participando da mesa, havia finlandeses, alemães, suecos... e eles eram visivelmente incapazes de compreender que fosse possível alguém sentir vergonha; culpa, certamente, mas vergonha? São matrizes de codificação moral bastante diferentes.
Por isso me espantou tanto a sedução que a ideia de pecado assume na narrativa de Inoue - algo que agrega ao "erro" o peso do segredo. O interessante é que é uma ideia de pecado ela mesma estranha (para nós, ocidentais), pois que à revelação não sucede nenhuma salvação; à revelação parece suceder a súbita compreensão justamente da inadequação da própria sensação de pecado. O peso não vai embora devido à algo como uma expiação, mas porque é o próprio pecado que se dissipa.
A solidão, no romance de Inoue, parece vir do oco dos rituais, símbolos e códigos. A distância irremediável a que todos os personagens estão submetidos, em relação uns aos outros, marca um absoluto desencontro. E aquilo que podia assumir o caráter de ponte - as cartas honestas e claras dirigidas à Josuke Misagi - revela uma ruptura ainda mais intensa, dando realidade a uma solidão que já se inflitrava pelos poros daquela vida.
Muito diferente, portanto, da tensão e da angústia de Fim de Caso, em que o pecado nunca pode ser expiado, mas é amenizado por meio de uma distância artificialmente criada: solidão auto-infligida e imposta ao outro, visando uma salvação absolutamente mundana. O que diferencia radicalmente os dois livros, além dos sentires de raízes tão distintas, sem dúvida é a ideia de Deus - aceita como milagre ou recusada como absurda e sem sentido - presente em Fim de Caso. Em comum, além da época sombria em que foram escritas, ambos podem ser reflexões sobre solidão e amor, sobre essa espécie de inescapabilidade (existe essa palavra horrível?) da solidão e sobre as promessas e limites do amor para cutucar rachaduras onde a saída se reveste de pedra.
* verso de poema de Fernando Pessoa para Sá-Carneiro. "[...] porque ha em nós, por mais que consigamos/ Ser nós mesmos a sós sem nostalgia/ Um desejo de termos companhia [...]".
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