Se te pareço noturna e imperfeita/
Olha-me de novo. Porque esta noite/
Olhei-me a mim, como se tu me/ olhasses. E era como se a água
Desejasse/ Escapar de sua casa que é o rio / E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo/ Entendo que sou terra. (Hilda Hilst)
Nesse ano em que as intensidades tiveram, para mim, muito mais ritmo do que palavra, os desejos de Natal e novo ano não podiam ser diferentes.
Então, meus desejos de Natal para todos vocês vão nesse clipe. Que hoje à noite e que no próximo ano, nossos corações sejam fortalezas - para enfrentar o que anda tão doído nesse mundo com amor e afeto, para escapar das ausências não faltando aos encontros, para que o Natal seja a festa da brincadeira, da simplicidade e da alegria de estar vivo, para que o ano novo possa restaurar nossos cansaços e, sobretudo, nossas próprias forças, porque, como já disse o Guimarães Rosa, o que a vida quer da gente é coragem.
Então, boas festas, bons encontros, e que a pausa de tudo o que corre pelos ponteiros do relógio permita restaurar as nossas forças e alimentar nossa coragem.
No sábado, fomos ao casamento da Tatiana e do Alex, compartilhar com eles a alegria e a festa do amor quando começa e recomeça. A Tati provavelmente é uma das noivas mais lindas que já vi, com suas unhas e sapatos vermelhos, ao mesmo tempo tão despida de véus, coroas, penteados demorados... e, por isso mesmo, tão absolutamente deslumbrante.
Não conheço muito o Alex, embora eles estejam juntos já há bastante tempo. Por alguma razão, ou por várias, a mesma vida que um dia tornou possível que a Tati e eu nos encontrássemos e construíssemos uma amizade forte e intensa, foi tornando difícil a gente participar do cotidiano uma da outra. Nem por isso o carinho que sinto por ela é qualquer vírgula menor - volta e meia esbarro com pedacinhos daquele nosso convívio miúdo, as músicas, as cartas, cartinhas e cartões, as fitas cassete que gravávamos, na casa da Ju, embaladas por insônia e álcool... Tanta gostosura, tanta partilha. Tantos fios entrelaçados - se não fosse por ela, Edu e eu nem teríamos nos conhecido, nem teríamos conversado por horas, nem teríamos construído esses nove anos de vida em comum.
Fiquei imensamente feliz e grata por poder participar desse momento. E de reencontrar tanta gente querida, de quem igualmente gosto, ainda que não nos vejamos com frequência. Ter na minha vida essas pessoas tão queridas, saber que estão bem, felizes, construindo suas vidas me faz um bem danado - dá sentido à nossa história comum, mas também me ampara e me dá consistência. É feito poder voltar para casa quando a gente se sente um pouco perdido e sozinho.
Como escrevi em algum cartãozinho para a Tati, há tanto tempo que perdi a data, "hay cosas que te ayudan a vivir". Pessoas queridas como a Tati e o Alex certamente estão entre elas.
É sempre uma coisa difícil para mim, não tem jeito. Costumo ser empática - tenho essa facilidade (na maior parte do tempo) para compreender o lugar do outro. Mas confesso que hoje está difícil. Porque nesses tempos em que o "outro é um estorvo", se alguém se preocupa com o outro deve ser porque é tonto. Compreender as dificuldades do outro - os atrasos, a correria, o ônibus que não passou, o recado que não se deu, a impressora que quebrou - passa por bobagem. E eu sei bem por que: é porque tudo isso pode ser também revelador que o outro, esse outro em quem você tenta reconhecer a si mesmo com suas fragilidades e confusões, no fundo pode simplesmente não estar nem aí para você.
Então o dilema ético e político é saber se você vai continuar sabendo compreender, sob o risco de ser tonto, ou se vai aceitar se identificar com o outro naquilo que temos de preguiças, má-vontades, descaso, vontade de aproveitar... E daí, o contrário da compreensão e da flexibilidade é o que? Incompreensão e rigidez? Onde é que a gente risca a linha de giz? Porque, olha, hoje não estou querendo ninguém pisando dentro da minha linhazinha. Hoje, tô querendo mesmo é varrer todo mundo e passar pano molhado e cheiroso pra ver se dá jeito nessa secura.
No caminho para a escola, Edu e eu conversando sobre uma notícia que saiu no New York Times, de que o narcisismo vai ser retirado do manual de diagnósticos de transtornos psiquiátricos (aqui, em inglês). Papo vai, papo vem, chegamos à escola.
Mal entramos e encontramos a Lucia, mãe de uma amiguinha do Rô, que de longe exclamou: "cortou o cabelo!". Ao que respondi que não, que até queria, mas ainda não tinha conseguido e que agora era verão, bom momento de cortar. Mas no meio da frase já tinha me dado conta que não era comigo que ela estava falando e sim com o Rô que... - tchan, tchan, tchan, tchan! - tinha cortado o cabelo de manhã. Vá lá que "cortou o cabelo" é uma frase com sujeito oculto, mas...
Pelo menos esse momento-umbigo não é mais doença mental ;-)