11 fevereiro, 2010

Aventuras (uma urbana, outra antropológica)

Então. Terça-feira à tarde eu ia para a terapia. Cheguei na esquina de casa a tempo de ver meu ônibus parado no ponto. Como estava adiantada, resolvi nem correr. Menos de cinco minutos, passou outro ônibus, mais vazio e tudo bem. Tudo até chegarmos no meio do trajeto, quando vimos o ônibus anterior parado e todos os passageiros do lado de fora. O ônibus em que eu estava parou para pegar os passageiros, mas até então o comentário era de que na semana anterior um ônibus quebrara no mesmo lugar. Quando os passageiros entram descobrimos que a história era muito mais emocionante do que um prosaico defeito: o ônibus tinha parado porque o motorista fugiu! Ele tinha pegado no pé de uma mulher (não sei porque), alguns homens que estavam no ônibus não gostaram, o motorista se sentiu ameaçado, aí fechou a porta de trás e deu no pé. O cobrador ficou atônito, os passageiros atordoados e foi mais ou menos nessa hora que chegamos.

Tudo bem. Era pra ser emoção suficiente, né? Nada... Porque aí, com toda aquela confusão, o motorista esqueceu o caminho e simplesmente foi seguindo em frente e perdendo todos os retornos possíveis... O bom é que foi tudo tão surreal que ninguém perdeu o bom humor, mas o ônibus ia seguindo, seguindo e só foi parar mesmo uns dois pontos depois daquele onde perdeu o rumo.

Essa cidade é sempre uma aventura... (Na minha pesquisa de mestrado, eu cheguei a propor uma "sociologia dos pontos de ônibus": já escutei tanta história e já vi tantas situações super reveladoras, que me valeram por livros e livros de teoria social sobre essa nossa sociedade, brasileira e metropolitana...).




Aí, tem outra aventura, que foi a minha participação como membro de um júri popular. No ano passado recebi o aviso que poderia ser chamada e aí, mal o ano começou, eles me chamaram, para estar lá presente este mês. Na semana passada fui, mas não fui sorteada. E aí essa semana não teve jeito: fui sorteada e aceita por ambas as partes (promotor e advogado de defesa).

Na semana passada eu já tinha observado o caráter cerimonial de toda a coisa: os paramentos, os móveis pesados (mas não antigos, já que o prédio é novo), a ideia de autoridade emanando nos símbolos, objetos, comportamentos... (E nem vou falar aqui do quanto o ambiente me remeteu às salas de defesa da FFLCH...).

Mas essa semana deu para perceber mais uma porção de coisas. O réu não estava lá - está foragido há anos, e só foi levado a júri porque recentemente (acho que 2008) modificaram a lei e, a partir daí, passou a ser permitido o julgamento de réus comprovadamente cientes do processo (como no caso de comparecimento em algum momento ou de defesa contratada). Como o júri é popular, o tribunal acaba virando um palco para a encenação das diferentes versões, ainda mais agora que - também por efeito da mudança na legislação - não são lidas todas as partes do processo (inquérito policial, processo no Fórum etc.). Depois de ouvidas as testemunhas - no caso de haver - já se passa à fala do promotor, que tem uma hora e meia e, em seguida, do advogado de defesa, com o mesmo tempo. Depois, ainda há a possibilidade de réplica e tréplica, com mais uma hora para cada parte.

É claro que não dá para falar somente a partir de um único julgamento, mas a impressão que me deu é que há uma imensa desigualdade - de conhecimentos, mas também de prestígio - entre promotores e advogados de defesa. É uma distância que talvez se explique pelas experiências mesmo de um de outro, bastante distintas (como inclusive entrou na pauta de discussões entre advogado e promotor ontem), já que enquanto o promotor tem milhares de hora de estrada no tribunal de júri popular, os advogados podem ter variadas atividades, dentre as quais a defesa de réus acusados de crimes passíveis de ir à júri popular. Mas não é só isso: pra mim, tem uma clara diferença de formação, já que são os alunos das melhores escolas que acabam passando nos disputados concursos. O promotor que estava lá deu várias vezes a entender a diferença entre ele e o outro, chamando os defensores de "advogados". Subentendia-se uma categoria da qual ele está excluído: ele não é a advogado, mas outra coisa, diversa. Melhor (porque melhor formado, porque com mais experiências, porque no serviço de defender a lei e a sociedade).

O caso não era mesmo fácil, mas de todo modo me espantou como o promotor se atribui uma missão educativa em relação ao júri (ainda mais porque havia vários que estavam lá pela primeira vez). Ele começou sua fala e, por cerca de vinte e cinco minutos, dedicou-se a explicar os termos das questões que nos seriam feitas e a contar casos absurdos que já presenciou, sempre nos instando a sermos coerentes com nossas escolhas. O promotor era bom e, embora não tenha levado nenhuma testemunha de acusação, foi preciso em seu raciocínio e na seleção dos trechos de depoimentos dados em outras fases do processo.

Já o advogado de defesa tinha um estilo todo barroco, no jeito de falar, de se mexer... E se perdia nesse estilo, porque às vezes faltavam as palavras, ou elas eram colocadas em contextos diversos de seu sentido (o que até levou o promotor a arriscar, na réplica, uma psicologia de boteco ao apontar "atos falhos" na fala do defensor! E ainda no tópico psicologia de boteco, ele também lamentou a ausência do réu porque, assim, perdíamos a oportunidade de verificar se ele era um "sociopata" - sacando um dicionário de doenças psiquiátricas e lendo para nós a definição! Eu juro que só não arregalei os olhos porque nos pediram para não esboçar reações - e também porque eu tive uma crise hipoglicêmica que me impede de abrir direito os olhos. Mas por dentro, virei uma pessoa só-olho!).

Pra mim, a hora mais surreal foi quando o promotor desatou a contar causos sobre sua relação com a Igreja Católica e se meteu a teologizar sobre uma suposta falta do perdão de Deus em toda a Bíblia. Aí realmente fiquei passada, porque um dos principais Sacramentos católicos é a Confissão e a Absolvição, né? A admissão da culpa - a capacidade de reconhecer-se pecador - e o perdão aos que de fato se arrependem é algo fundamental para a Igreja. E, mesmo se pensarmos apenas nas religiões cristãs, se não fosse a possibilidade de arrependimento e perdão, será que as religiões evangélicas seriam tão importantes inclusive em espaços prisionais? Quantos casos há de convertidos, de gente que mudou de vida por conta dessa possibilidade de ser perdoado por ter cedido às tentações? Além de achar que ele se perdeu, também achei que ele estava se arriscando desnecessariamente, já que meter religião no meio é sempre delicado. Mas aparentemente isso não teve maiores consequências a não ser nosso cansaço e a tirada do advogado de defesa, avisando que seria rápido e responderia somente as questões relativas ao processo, deixando o debate teológico para um momento oportuno.

A plenária em que eu estive tinha uma imensa cruz, com um Cristo digno de capela. Confesso que, no primeiro dia, isso me chocou um pouco, mas não consigo saber se foi por ter chegado a uma instituição do Estado, e portanto supostamente laica, e dar de cara com aquilo ou se foi pelo choque de encontrar aquela imagem fora de seu espaço usual (ainda mais eu, que tanto tempo fiz parte de grupo de jovens, fui catequista e tals). Não sei explicar, mas me chocou.

E só para terminar com uma piada, no começo eu não tinha reparado que, além daquela capa preta com que eles se paramentam, eles usam também um cordão. Aí, mal tinha chegado, bati o olho e reparei que no pescoço do juiz tinha um troço pendurado que eu encanei que era um patuá. Até simpatizei com a ideia: imagina, ter que estar lá todos os dias, ouvindo aquelas histórias, decidindo a vida das pessoas? Até eu iria pensar no caso de carregar um patuá. Só quase no fim do dia é que, olhando o juiz de outro ângulo, percebi que o meu imaginado patuá era o seu cordão, de cor clara, enrolado. Fiquei rindo sozinha (mas só por dentro, que não podia ainda mostrar emoções)!

Imagens: daqui e daqui.

4 comentários:

  1. Gostei muito de ler isso! Beijo pra ti e família!

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  2. Ôba, que visita que andava sumida :-) Bom te ver por aqui. Beijo!

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  3. Bi, o júri foi na Barra Funda? Eu vi um pedação de um quando trabalhava lá, e tudo girava em torno de se o réu era mesmo um tal de Sapão, acho que já contei essa história... Vale mesmo toda uma antropologia, especialmente da linguagem jurídica!

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  4. Mon cher, era no de Santana. Você não me contou essa história do Sapão, não... Mas me lembrei de você, porque há toda a teatralização das situações, a linguagem jurídica, e mesmo o processo todo desde o inquérito policial até o julgamento... É todo um universo. Mas me espantou a total falta de compreensão sociológica do réu ou das vítimas - sabe que a gente não soube nem a idade, nem a profissão do réu? Que o promotor não tivesse interesse em trazer estes detalhes humanizantes, ok, mas e o advogado de defesa? Num país de cidadania regulada, não faria diferença atestar que o rapaz era trabalhador, honesto etc? Mas parece que há uma negação da estrutura de classes, e quando eles tentam dar exemplos para identificar o júri das situações postas, a pressuposição é a de que somos todos iguais em nossos interesses, motivações e paixões. Realmente, é todo um mundo...
    Beijocas!

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