06 março, 2015

quaresma

jejuar, nessa vida sem ritos, apenas nos dias de exame. um jejum tão sem ritmo que arrisca acordar e esquecer do compromisso – e aí toca recomeçar a contagem no dia seguinte: no mínimo doze, no máximo quatorze horas. um breve intervalo para que o sangue colhido revele seus mistérios ao invés de ocultá-los.
na sala de espera, espero. acostumados à distração da fome no correr dos dias, o mau-humor vai se instalando cada vez mais depressa nesses instantes ociosos, ritmados pela campainha a chamar o próximo de uma fila que parece, ela sim, constantemente alimentada.
é uma fome que nem chega a ser fome, claro. é somente um acordar dos músculos do estômago, que se inquietam num vazio ácido.
penso na simplicidade de uma torrada com manteiga e tomates, um pouquinho de sal. café da manhã estranho, aprendido com a amiga querida. penso no cremoso de um café com leite, temperado com uma colher de chá de extrato de baunilha. o leite gordo, a produzir natas e bigodes. penso num suco fresco de laranjas doces.
entre a irritação com a demora e os pensamentos que idealizam um café raramente possível no cotidiano não sobra espaço para nada. o livro, fechado, depois de diversas tentativas de conferir sentido àquelas letras enfileiradas. concentração nenhuma. será que algo no exame de sangue explicará essa incapacidade? ou ela se deve a essa situação momentânea?
na quaresma, o único jejum era o de carne, às sextas-feiras. de vez em quando, o embate com o corpo mais agudo, a suspensão dos doces pelos quarenta dias. atravessar o deserto, sem a ajuda do açúcar: enfrentar-se com o vazio e o seco, sem conforto algum. do outro lado, a alegria de dobrar a própria vontade.
um nome é chamado na área de exames e faz o coração quase parar. é o nome e sobrenome dela e estico o pescoço e os olhos, mesmo sem querer. mesmo sabendo que ela está morta há vinte anos. o nome, que era o dela, abrindo uma fresta de possibilidade de tudo ter sido um engano, um engodo. e então eu a encontraria, finalmente envelhecida, não mais congelada naquele corpo de dezessete anos. me sinto boba e frágil ao ter me assustado. é um nome comum, afinal.
procurando por ela, nem vejo sua homônima. não saberia reconhece-la, se o que procuro é essa outra, ainda aos dezessete anos, o corpo alto e esguio de bailarina como antes da doença. antes da travessia pelo deserto. na quaresma daquele ano, será que abri mão dos chocolates e dos doces, barganhando: um sacrifício por um milagre? minha memória me trai. só me lembro de ter ofertado a ela chocolates.
finalmente a minha vez, e a enfermeira erra a veia, me machucando. quantas marcas, um corpo hospitalizado? não deveria mais pensar nisso, mas penso. agora é só no que penso: nela, em seu corpo frágil (como o meu); nela, e no frio que sentia (e que também me provoca arrepios); nela e no tanto de amor em volta dela, ainda que insuficiente para amarrá-la a esta vida. foi depois da morte dela que jejuar deixou de fazer sentido – a urgência atravessando o tempo e fazendo do deserto, cidade de luzes e desejos.

meu braço está roxo. em casa não há tomates nem laranjas. pego na geladeira o leite: uma xícara na leiteira e outra na vasilha branca. enquanto o leite esquenta e o café passa, derramo ainda um ovo, uma colher de óleo, uma colher de fermento químico e uma xícara de farinha de trigo na vasilha onde só havia leite. uma pitada de sal e uma colher de açúcar. mexo bem e começo a cozinhar: panquecas, redondas e grossas. um improviso, mas nem parece. na primeira garfada trituro pequenos pedaços e percebo que deixei parte da casca dos ovos cair na massa. finalmente começar o dia, no esforço em chegar ao fim de mais uma travessia – a  memória da areia entre os dentes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário