jejuar, nessa vida sem ritos, apenas nos dias de exame. um
jejum tão sem ritmo que arrisca acordar e esquecer do compromisso – e aí toca
recomeçar a contagem no dia seguinte: no mínimo doze, no máximo quatorze horas.
um breve intervalo para que o sangue colhido revele seus mistérios ao invés de
ocultá-los.
na sala de espera, espero. acostumados à distração da fome
no correr dos dias, o mau-humor vai se instalando cada vez mais depressa nesses
instantes ociosos, ritmados pela campainha a chamar o próximo de uma fila que
parece, ela sim, constantemente alimentada.
é uma fome que nem chega a ser fome, claro. é somente um
acordar dos músculos do estômago, que se inquietam num vazio ácido.
penso na simplicidade de uma torrada com manteiga e tomates,
um pouquinho de sal. café da manhã estranho, aprendido com a amiga querida.
penso no cremoso de um café com leite, temperado com uma colher de chá de
extrato de baunilha. o leite gordo, a produzir natas e bigodes. penso num suco
fresco de laranjas doces.
entre a irritação com a demora e os pensamentos que
idealizam um café raramente possível no cotidiano não sobra espaço para nada. o
livro, fechado, depois de diversas tentativas de conferir sentido àquelas
letras enfileiradas. concentração nenhuma. será que algo no exame de sangue
explicará essa incapacidade? ou ela se deve a essa situação momentânea?
na quaresma, o único jejum era o de carne, às sextas-feiras.
de vez em quando, o embate com o corpo mais agudo, a suspensão dos doces pelos
quarenta dias. atravessar o deserto, sem a ajuda do açúcar: enfrentar-se com o
vazio e o seco, sem conforto algum. do outro lado, a alegria de dobrar a
própria vontade.
um nome é chamado na área de exames e faz o coração quase
parar. é o nome e sobrenome dela e estico o pescoço e os olhos, mesmo sem
querer. mesmo sabendo que ela está morta há vinte anos. o nome, que era o dela,
abrindo uma fresta de possibilidade de tudo ter sido um engano, um engodo. e
então eu a encontraria, finalmente envelhecida, não mais congelada naquele
corpo de dezessete anos. me sinto boba e frágil ao ter me assustado. é um nome
comum, afinal.
procurando por ela, nem vejo sua homônima. não saberia
reconhece-la, se o que procuro é essa outra, ainda aos dezessete anos, o corpo
alto e esguio de bailarina como antes da doença. antes da travessia pelo
deserto. na quaresma daquele ano, será que abri mão dos chocolates e dos doces,
barganhando: um sacrifício por um milagre? minha memória me trai. só me lembro
de ter ofertado a ela chocolates.
finalmente a minha vez, e a enfermeira erra a veia, me
machucando. quantas marcas, um corpo hospitalizado? não deveria mais pensar
nisso, mas penso. agora é só no que penso: nela, em seu corpo frágil (como o
meu); nela, e no frio que sentia (e que também me provoca arrepios); nela e no
tanto de amor em volta dela, ainda que insuficiente para amarrá-la a esta vida.
foi depois da morte dela que jejuar deixou de fazer sentido – a urgência
atravessando o tempo e fazendo do deserto, cidade de luzes e desejos.
meu braço está roxo. em casa não há tomates nem laranjas.
pego na geladeira o leite: uma xícara na leiteira e outra na vasilha branca.
enquanto o leite esquenta e o café passa, derramo ainda um ovo, uma colher de
óleo, uma colher de fermento químico e uma xícara de farinha de trigo na vasilha
onde só havia leite. uma pitada de sal e uma colher de açúcar. mexo bem e
começo a cozinhar: panquecas, redondas e grossas. um improviso, mas nem parece.
na primeira garfada trituro pequenos pedaços e percebo que deixei parte da
casca dos ovos cair na massa. finalmente começar o dia, no esforço em chegar ao
fim de mais uma travessia – a memória da
areia entre os dentes.
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