27 maio, 2013

pra chover mansinho

Do cd novo do The National. Linda, linda... perfeita pra contrastar com o chumbo do céu ou para fazer par com a garoa mansa. Dá até saudade do que não foi. De andar de mãos dadas pela cidade. De conversar demorado, esquecidos que o tempo existe. De dividir um guarda-chuva rosa-púrpura. De cruzar uma pinguela, uma ponte, um viaduto: qualquer hífen pra articular você-eu. Pra gente abrir os braços e flutuar, infantil, no oceano salgado.


17 maio, 2013

voragem

é a imagem dela dentro de mim - essa memória frágil e amarelada - que me dá força pra de vez em quando odiar. a imagem relampeja e logo se fixa no céu da lembrança, feito a primeira estrela na noite nebulosa. ela no chão. ela ajoelhada no chão de uma cozinha. ela e a bacia presa entre os joelhos. ela e as mãos, incansáveis, virando e revirando a massa. a massa de pão. o avental entre o colo e a bacia. e a massa virando e revirando. ela está envelhecendo, mas é uma heroína pros meus olhos infantis. ela e a amplidão de seu espaço. ela e a fazenda de rio gelado, porcos gordos, mato farto. a mulher que no fim da tarde me ensina a modelar a raiva: um quilo de farinha de trigo. três copos do leite gordo e forte que me salvou os olhos quando, ingênua, achei que a pimenta guardava dentro de si o seu ardido. uma colher de sopa de açúcar. dois tabletes de fermento biológico. meio copo de manteiga. sal a gosto. a receita pra aplainar o que farpeja por dentro. os cabelos loiros dela presos enquanto as mãos, ágeis, virando e revirando a massa. ela vê meu olho espantado de criança frente àquele estranho rito e me confidencia: é pra usar bem a fúria. e pára de virar e revirar para socar, bater, lançar plafts a massa no solo duro da bacia. a imagem dela ecoando mais luminosa no prateado do alumínio. a bacia inteira amassada. marcada pelo sem-número de vezes que numa vida, numa vida de mulher, numa vida de esposa, numa vida de mãe, fermenta-se o pão na ebulição do sentimento. ela é tão bonita, assim sem contornos claros na minha memória. sinto falta dela. então recupero, palavra por palavra, essa imagem. especialmente quando eu também viva, uma vida de mulher, uma vida de esposa, uma vida de mãe. fermentando o pão na quentura do sentimento. depois colocando pra descansar a massa. e polvilhando de farinha a ira agora ovalada. cortando xis antes de levar ao forno. depositando a raiva crua no forno pré-aquecido e esperando crescer, crescer. e cozer. e dourar. e por fim recolher ainda quente o milagre. ela de volta, quase viva novamente. e então eu agradeço a ela, por ela. por saber o que fazer do meu rancor. no pão ainda quente, a vida finalmente amansa. o búfalo alimentado se deita amplo e fecha os olhos.