No final do ano passado, eu tinha encontrado uma gravação super doída do Wado: "Mata a gente (saudade)". E desde então tinha ficado pensando em um post sobre essa coisa pungente que a gente chama de saudade. Porque a música é rica em imagens latejantes - a dor fininha do parafuso rodopiando até inflamar em ferrugens; a citação de um cordel que alerta que pra plantar saudade é preciso garantir a esterilidade da semente; o coração num desastre natural de pedra lavada...
Mas o tempo é curto e eu acabei esquecendo dessa história. Até que outro dia lembrei e fui procurar de novo a música, e aí acabei chegando nesse post bonito da Clotilde Tavares: Troncha de Saudade. [e tem palavra que combine mais com saudade que esse "troncha" de pernas enfraquecidas e corpo sempre à beira do tropeção?].
De novo, pensei em escrever sobre essa coisa da saudade, sobre como essa dor-tristeza-nostalgia-melancolia é algo que se sente em português [e sempre me lembro do finalzinho da crônica "Extremos da Paixão", do Caio Fernando Abreu, em que ele comenta: "Ah, que dor sentida e portuguesa", falando das desmedidas da paixão, mas bem podia ser sobre outras tantas intensidades...], Mas, já sabem, o tempo. Ou talvez a preguiça de cutucar gratuitamente assim as casquinhas de tantas saudades cicatrizadas, arriscando tornar o corpo pequeno para todas as distâncias dentro e fora de mim.
E então ontem a Julia postou no FB essa notícia sobre "saudade" ser das palavras mais difíceis de traduzir e eu voltei a pensar no assunto - até porque também já estava parecendo perseguição :-) E me lembrei de música do Djavan, aqui cantada junto com o Chico Buarque, e suas imagens de urgência e reconhecimento da impossibilidade de dar vazão a ela, como nessa estrofe:
"Quis chegar até o limite
De uma paixão
Baldear o oceano
Com a minha mão
Encontrar o sal da vida
E a solidão
Esgotar o apetite
Todo o apetite do coração".
Baldear o oceano
Com a minha mão
Encontrar o sal da vida
E a solidão
Esgotar o apetite
Todo o apetite do coração".
Não é mesmo assim a saudade? Essa coisa infantil de tentar conter na concha das mãos o horizonte do mar? De saciar a sede com sua água salgada? De tentar estancar um apetite que se alimenta da ausência mas que também é voraz na presença - pra resgatar o tempo perdido, pra tapar o buraco, pra incrementar a saudade do depois...
O que talvez seja mais difícil de traduzir na saudade é escapar da ideia simples da "falta". Porque a saudade é mais geografia física do que operação matemática. Não é questão de menos ou da soma do jogo ser zero. É uma distância que se amplia por dentro do corpo, afastando a gente do outro ou da gente mesmo. Dá até pra sentir saudade sem ser de alguém ou de alguma coisa - é das saudades mais difíceis de matar, a mais sujeita a recidivas: se ainda fossemos de pano, a agulha cosendo remendos, reunindo as pontas esgarçadas na antiguidade do cerzido. Mas a gente é carne e osso e vísceras.
Lembrei também dessa música do Zeca Baleiro que está aí em baixo, Brigitte Bardot, que tão bem fala da materialidade da saudade do que se foi - e, de novo, não é de falta que se trata, mas da prisão no presente, da impossibilidade de voltar ao passado e de fazer diferente - mistura de arrependimento, impotência, vontade de cobrir a distância com berros: "A saudade é uma colcha velha que cobriu um dia numa noite fria nosso amor em brasa/".
Saudade assim, nessa intensidade que faz jus ao nome, é burra, teimosa... turrona mesmo. De frente pro abismo, aperta os olhos pra fazer de conta que o precipício é mais rasinho. Acho que tem coisa que é assim mesmo - a gente só vive até o fundo se estiver um pouco distraído.