(pensamentos em três tempos, na quarta-feira de cinzas de 2014).
- Quando eu era pequena, adorava ouvir as histórias em disquinhos, ainda que bem no meio, às vezes no melhor da história, tivesse que virar... A gente tinha duas coleções - uma da Disney, e outra que chamava Taba. Essa era minha preferida - com seus diferentes universos, as músicas deliciosas. Já comentei que adorava a do
Marinheiro Marinho, uma pequena lição de inconformação. A segunda em preferência era a do Bom-Dia Todas as Cores, sobre um camaleão que queria muito agradar. Mas uma que eu também adorava era a do Sapo Vira Rei Vira Sapo, também da Ruth Rocha (acho que em livro chama "A volta do Reizinho Mandão"). Era uma lição sobre autoritarismo, sobre como a lei pode ser absurda, sobre desobediência civil. E era uma lição importante para uma geração como a minha, que nasceu quando a ditadura já ia "acabando". Mas ultimamente a história toda ganhou atualidade, infelizmente não pelo trabalho da memória...
- E aí leio a coluna da Eliane Brum, de novo tão precisa ao cutucar nossas feridas; de novo tão relacionada às reflexões que estou propondo na minha disciplina optativa este semestre, em seu apelo para que
escutem o louco.
- Passei uma parte do feriado lendo
K, do Bernardo Kucinski, que a Cosac acaba de republicar. É lindo e duro, muito duro. E foi bem interessante ler depois de ter lido, em janeiro,
Poder e Desaparecimento, da Pilar Calveiro. Pois o desvendamento desse mecanismo de poder, que intencionalmente faz desaparecer - e não apenas por encobrimento, mas para produzir um tipo bastante específico de terror e medo - é um tema comum a ambos os livros. Talvez também comum a ambos seja a crítica incisiva à uma espécie de transe em que parte da esquerda se lançou, levando muitos jovens em direção à morte por um tipo específico de alienação. (No texto de Calveiro, isso aparece ao longo das reflexões; no de Kucinski, aparece condensada na carta que encerra o livro).
Embora se trate de algo absolutamente distinto, em parte dos relatos de sobreviventes da Shoah há a manifestação da determinação em sobreviver para contar, para narrar o horror, para testemunhar o absurdo; pois o sentido sacrificial de purgação era dado pelo outro lado, o dos nazistas (daí a recusa de parte dos sobreviventes do termo Holocausto, que reafirmaria tal sentido). E é como se entre a esquerda latino-americana se passasse o inverso - como se o poder desaparecedor tivesse consciência de seu sentido pragmático (embora em alguns casos também houvesse a crença da purgação necessária em nome de um projeto nacional, da ordem ou do enfrentamento dos inimigos internos), mas os que foram tragados no sorvedouro acreditassem que, em sua ausência, a história se encarregaria de esclarecer os sentidos do sacrifício de suas vidas. Deixaram tarefa aos vivos, que não têm como "recuperar" os sentidos de coisa alguma: podem somente tentar atribuir sentido a partir do presente. O problema está em que por vezes esse sentido se ausenta, espirra nas mãos ensaboadas e aí é tênue a linha que separa o labor do luto da tentação do juízo - em especial quando a possibilidade efetiva de julgamento está, como em nosso caso, interditada.
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E no entanto é preciso cantar/mais que nunca é preciso cantar/ é preciso cantar e alegrar a cidade".