“A que horas eles iam mesmo
chegar?”, perguntou, um olho no relógio e outro na panela, pra outra que
procurava um cd novo já que o anterior acabara de acabar. As mãos cheirando
ao alho e à cebola que agora fritavam shshshsh no óleo, perfumando a casa. “Encontrou
os cds?”, voltou a inquirir, já distraída da pergunta anterior enquanto ia
jogando na panela o arroz lavado. “Encontrei sim!”, ouviu a outra dizer
ao mesmo tempo em que a voz de Madeleine Peiroux preencheu a distância da
cozinha à sala. Sorriu. Adorava aquele cd. Era o que ia dizendo quando a outra
alcançou a cozinha, muito animada, atirando à queima-roupa “você roubou um cd
de uma biblioteca? E de uma biblioteca em Paris?!!”. A água fervente quase
desviando o curso rumo à panela, o pulo das mãos tão brusco quanto a batida do
coração. Não era que era isso mesmo? Não era que um dia tinha roubado um cd? A
voz saiu branca “Nossa. Tinha até esquecido”. Tentou na mesma pausa se lembrar
e esperar que a outra esquecesse. Não funcionou. “Tem uma boa história aí, não
tem?”, a outra toda interesse e provocação. “Nem tanto”, tentou frustrar a
insinuação, “Época de durezas de estudante, um pouco de irresponsabilidade e
esquecimento...”. Fez uma pausa para lavar as abobrinhas que vinha descascando
e pegar, embaixo da pia, o ralador. “... e, claro, um grande amor. Ou, pra ser
mais justa, uma grande paixão". Tão solene essa última afirmação que a outra
agora era só olhos a escutar. “Nunca tinha me dado conta, mas você me
faz lembrar um pouco dela”, “Dela quem? Da paixão?”. Negou rindo enquanto
quebrava os ovos, separando gemas e claras: “Dela: do objeto da paixão”. As sobrancelhas da outra se erguendo
discretas em compreensão. “A gente ficou juntas pois dois meses, pouco antes de
eu voltar. E foi tão, mas tão urgente – aquele cronômetro às avessas, marcando
um tempo que se esgotava. A gente tinha hora pra acabar e então acabou quando essa hora chegou. Mas
acabou o tempo e não a paixão, claro, que só inflamava mais com aquele fole
soprando tic-tac em tudo-tudo-tudo que a gente fazia e vivia”. Ela ia lembrando em
voz alta enquanto mexia o fogo bechamel em fogo um pouco alto demais, o cheiro
da noz-moscada recém-ralada inebriando levemente as palavras. “Em horas em que
a gente quase desesperava da consciência de que o tempo era curto, a gente
ouvia Dance me to the end of love, agarradas na sala minúscula do apartamento
onde ela morava. Era tão triste. E era tão lindo”, as abobrinhas e as gemas
girando piruetas no molho ainda quente. “Eu tinha emprestado esse cd na
biblioteca, e depois que a conheci fui
renovando, renovando, incapaz de devolver. Até que chegou o dia de voltar e sem
pensar muito enfiei o cd na mala e trouxe comigo. Se tudo o que a gente fez foi
roubar o tempo, eu tinha que ficar com alguma coisa, sabe? Eu não pensei muito
nisso, mas acho que eu quis salvar alguma coisa de todo aquele incêndio e foi
só isso que eu consegui trazer”. A fala agora entrecortada pelos soluços do
metal batendo as claras. “Não pensava nessa história há tanto tempo... parece
que foi noutra vida... até assustei quando você me perguntou do roubo...”.
“Logo vi que tinha uma boa história ali”, a outra rasgou o silêncio, os olhos
voltando a ver e deixando a tarefa da escuta novamente pros ouvidos. As claras
em neve bem firmes se dissolvendo delicadas na mistura de abobrinha, leite,
queijo e gemas. “Em vinte minutos temos suflê”, anunciou, já fechando o forno.
“A que horas mesmo marcamos?”. A outra agora em pé ao seu lado, servindo-se de
mais vinho enquanto lhe passava a sua taça, novamente cheia. Olhando de esgueio
o relógio, “Acho que ainda temos uns minutinhos”. Encostadas as duas no balcão,
bebericando em silêncio. Até que a outra “Eu te faço lembrar dela?”, “Nunca
tinha reparado, mas lembra sim: o jeito que o cabelo cai nas suas costas, o
modo das mãos se mexerem quando contam histórias, e essa mania de morder o
lábio pelos cantos, num esgar que é meio riso, meio aflição”. O disco chega em
I’ll look around e a outra pergunta, a voz num fiozinho “Quer dançar comigo?”.
A campainha toca e tudo já parecendo errar em desencontro. “Salvas pelo gongo”,
a outra brinca, embora o nó na garganta, sem gosto nenhum de salvação. “Outro
dia a gente dança, prometo. Eu te convido pra jantar, só nós duas”, ela adia
atender a porta apesar dos ding-dongs insistentes. “Combinado, então. Eu venho
e te faço uma receita de berinjela que quero muito experimentar”.