Já te contei da primeira vez que te vi. Já te contei também do abismo que se abriu debaixo dos meus pés, sem aviso, nem seguro, quando você também me viu. Já te contei, já recontei: para não esquecer e para não lembrar mais.
Mas então,
ela pôs em palavras a exatidão daquele instante em que nada mais foi igual. E foi quase te reencontrar, no começo da madrugada, quando sonho e realidade se misturam e pressagiam infinitas possibilidades.
De manhã, ansiosa, fui reler o texto e não achei. Entre os goles no café, tentei me manter calma, procurar com mais cuidado, modificar as chaves de busca, desesperada pela possibilidade de ter perdido a boniteza daquela carta. Finalmente, consegui encontrá-la: estava ali o tempo todo, bem na frente do meu nariz, mal escondida debaixo da minha angústia em perdê-la.
Perder você faz parte da vida. Inaceitável é perder a precisão com que alguém enfeixa os sentimentos todos e os amarra em três parágrafos e um ponto final.
Carta nº 9 - dos primeiros dias (Rita Apoena)
Ontem os seus olhos doeram em mim. E como pode um
olhar doer em alguém uma dor tão limpa, rabiscar de azul o silêncio que
estendi pelos cantos no chão? Tive tanto medo de encontrá-los, tive medo
de levantar os cílios e eles se deitarem feito um pássaro em tuas mãos
tão claras, e descobrires o que eu já não posso evitar. Tive medo de
notares o quanto eram indefesos diante dos teus... Por isso, tratei de
escondê-los por trás do quadro, dos ferros na janela, da cortina, do
tapete, das pétalas, colocando-se diante de minhas pálpebras, enquanto
eu falava qualquer coisa para me esconder por trás das palavras.
Mas foi quando eu ainda nem havia dito nada, foi quando eu ainda nem te
conhecia, foi na fresta que, por descuido, esqueci aberta... que teus
olhos doeram
em mim,
caíram em mim e me mancharam de tinta. Não sei o que era ali dentro
deles, se a minha tristeza ou a tua, mas nunca vi olhos tão claros, nem
outros que ofuscassem tanto a minha vida.
Agora eu viro para o lado e não quero mais que o outro me siga, não
quero mais que o outro me toque porque tocar as minhas costas é empurrar
a manhã para o meio das nuvens, entende? Uma manhã que era toda feita
para colher as maçãs, as maçãs que eu enrolaria doces numa forma para te
dar. Por isso, quando ele me tocou, duas lágrimas eu aninhei no
travesseiro, e escorri com elas, e dentro delas esperei que ele tocasse o
meu corpo. Só voltei quando ele acabou.