24 abril, 2008

Bem vindo ao deserto do real

Um professor muito querido sempre chamava nossa atenção para a especificidade do olhar da criança para o mundo e as relações sociais: por estar numa situação liminar, as crianças circulam silenciosas e quase despercebidas, estando portanto em situação privilegiada para compreender "os bastidores" das relações. (Estou simplificando os argumentos, mas se alguém quiser saber mais, pode dar uma olhada no Capítulo 3 do livro de José de Souza Martins, Fronteira: A degradação do Outro nos confins do humano, publicado pela Hucitec).

Essa história do terremoto me fez lembrar que, quando criança, eu tinha três grandes medos: de terremoto, de incêndio e de guerra nuclear. Aparentemente, eu não era a única (o Edu que me indicou: a Soninha também tinha medo de coisas parecidas).

De terremoto eu tinha medo devido às cenas do terremoto do México, em 1985. Eu tinha 8 anos e imagino a impressão que as notícias da época devem ter me causado. Me lembro de sonhar, de me angustiar com os desaparecidos e soterrados... E o fato da minha mãe ter morado por dois anos na Califórnia não foi favorável a que esse medo de terremotos fosse deixado pela vida, substituído por outros mais concretos.

O medo de incêndio também foi alimentado por imagens: me lembro nitidamente na noite em que liguei a TV e vi o incêndio do prédio da CESP. E vejam que era 1987, eu já era um pouco mais velha. Mas aquele prédio queimando no meio da noite, a correria para apagar o incêndio, a dúvida sobre se havia gente ou não no prédio...Ui!

E tinha o medo de guerra nuclear, né? Que não dava para passar pela Guerra Fria incólume. Eu ficava apavorada em época de São João; sério mesmo a-pa-vo-ra-da! Como eu morava em São José dos Campos - SP, onde fica o Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE (onde aliás os meus pais trabalhavam), rolava a lenda de que a cidade estava no alvo - não sei bem de quem - por ser militar e por abrigar além dos centros de pesquisa, um monte de indústrias de armas. Então eu vivia com medo e qualquer estouro achava que era a guerra que estava vindo aí.

Um parênteses: o filme Exterminador do Futuro só acrescentou imagens aos meus medos e fantasias. Aquela imagem da mãe embalando o filho no parquinho e em seguida desaparecendo, com o cogumelo gigante surgindo no horizonte e os ventos cheios de poeira radioativa se espalhando rapidamente... putz!

O título do post é uma fala do filme Matrix (lembram-se? Quando o Morpheus conta pro Neo a verdade nauseante sobre o que se tornou o mundo?) , mas também de um livro do Slavoj Zizek (a grafia é outra, mas eu não sei fazer isso no meu teclado português) sobre o 11 de setembro. Vale a pena. E eu lembrei dele porque ia escrever sobre medos de infância até que percebi o quanto eles estão relacionados às imagens, à amplificação do real ou à representação do que está/parece na iminência de se transformar em realidade.

Para mim, criança, o clima de medo sob o qual vivemos muito tempo ficou representado assim: o medo dos acidentes e o medo do fim do mundo, nenhum pouco acidental...Talvez fosse da finitude da vida que eu tivesse medo, de morrer e de ver morrer as pessoas que eu queria bem. Mas nas minhas lembranças não era isso que eu temia - eu temia era a aleatoriedade das coisas, a falta de sua previsibilidade. Fossem as tragédias provocadas por acidentes ou escolhas, o que mais me angustiava era a impotência para evitá-las.

Sensibilidade sociológica infantil anunciando que a gente vive sempre num nível de escolhas e decisões descoladas da História?

Vai ver que é por isso que ainda hoje eu gosto tanto das metáforas de Matrix.

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