25 janeiro, 2012

revoluta

é sempre feito irrupção: o por dentro a se revolver lento, soltando o aroma da terra úmida rescendendo à chuva, trazendo à tona os galhos, as folhas, as pedras, as minhocas, os pedaços em putrefação. a revolução se anunciando no desejo de arar - verbo com dentes e vento a correr entre eles. à unha, cavar espaços para a nova semeadura, arrancando da terra surpresas. sim, é sempre irrupção, sobretudo quando a pressa desatenta os sinais. sobretudo quando a seta correndo à frente distrai da vida que é ciclo. onde havia nada, de repente um botão.

24 janeiro, 2012

coleta

dessa vez na praia, uma coisa muito esquisita. é uma praia sem conchas, sem areia grossa, sem onda forte.  mansidão que faz esquecer que ali também é mar. um dia acordamos e a praia revirada: a orla pontilhada de conchas e mais conchas, pequenas e grandes, abertas e fechadas. aqui e ali também peixes e caranguejos, despedaçados. em algum lugar do mar uma revolução, e então o mistério espalhado pela areia.
vezemquando, dentro de mim, também uma revolução. lançando às bordas as palavras mortas, gastas. às vezes já ocas, outras ainda meio vivas: na marulhada, nenhum cuidado com a fina seleção. lanço-as todas com ferocidade e impaciência. (meu feminino sempre rescendeu à maresia). pelos cantos de mim, esses restos encharcados e salgados, que eu e você recolhemos como quem puxa sobre as orelhas os cabelos ou retira do rosto um cílio distraído.

13 janeiro, 2012

luz


minha avó sempre acende uma vela quando sabe que um dos seus precisa de luz: quando a decisão é dura; quando a estrada é comprida; quando o desafio é imenso, certamente haverá aquela chama acesa com todo o amor do mundo, a envolver o destinatário nas teias invisíveis da fé e da esperança. quando vim viver em são paulo, e a cidade me assustava tanto, me amparava a ideia de que sua oração noturna, diariamente repetida, me protegia – a mim que sou sua neta e afilhada. estar nas orações delas era quase estar em casa.
minha mãe herdou a tradição e também acende velas nos momentos críticos.
eu sempre entendi o gesto, mas hoje em dia, com enteadas que andam pela cidade e viajam sozinhas, com a autonomia que a vida dos membros da família vai ganhando, com as viagens, as novidades, os novos passos do rodrigo pelo mundo, entendo mais. entendo melhor essa vontade de recolher os queridos, de estender sobre eles a proteção e a luz, de ajudá-los a não se perderem, de esperar que vão e voltem a salvo. acendendo esse farol para, imaginariamente, reconstituir a proteção uterina da casa, enquanto os filhos todos à vista e a imensidão do mundo no quintal. acendendo esse farol também, deusnoslivre, para que em caso do pior, eles terem o que lhes guie no outro mundo.
acender velas é o que resta às mães e às mulheres quando a família se amplia, transborda o portão da casa.
me crescem os filhos e também eu sinto essa urgência em renovar os modos de dar a luz.

12 janeiro, 2012

marcelo marmelo martelo


É sempre inesperadamente que me lembro dessas coisas, embora a lembrança seja reticente, incompleta, signo da dificuldade que sempre tive com a Física. (Podia ser tão simples, pois é tudo tão presente na nossa vida, mas por alguma razão não é. E olha que eu nasci numa família de físicos e, crescendo, sempre tive vários por perto). Mas não era sobre isso que eu queria falar. Era sobre a unidade de comprimento das ondas. Devo ter aprendido em algum momento, mas nesses dias, largada ao mar, achei que a unidade deveria ser lambda. Não tem nada a ver com a letra grega e, desnecessário sublinhar, com qualquer efetiva forma de mensurar o comprimento da onda. Tem a ver com o som, tão próximo à lambida, ainda que uma lambida mais apressada, interrompida justo na curva da palavra, quando a crista que se ensaiava quebra num repente. A primeira parte da palavra nos elevando docemente, feito boiar no mar mais fundo, e a letra muda fazendo uma quebra brusca, a língua estalando doída no fim abrupto. Quando a onda vem mansinha, arredondada, sempre digo que o mar só veio nos  lamber – experimentar um pouquinho dessa gente intrometida que invade seu corpo; fazer uma carícia, feito cachorro brabo que amansasse e baixasse a guarda para nos cheirar a mão. Só que o mar – mais brabo, mais generoso, mais envolvente – não se contenta com roubar um gostinho do entre-os-dedos e nos lambe por inteiro, deixando na gente aquele melado salgado. A onda, uma lambida. Como lambida não parece científico o bastante, meu cérebro me dá um caldo e eu penso em lambda.
A intensidade da onda, o comprimento da onda, a duração da onda, o ritmo da onda, a espuma produzida pela onda: tudo cabe nessa unidade estranha e plural que não significa coisa alguma. A não ser talvez que, entrando no mar, deixo de lado tudo o que sei e volto a ser criança. E então ondas se medem em lambda e são produzidas por um deus potente e peidorrento, mezzo Poseidon, mezzo Netuno, que se diverte em fazer borbulhar e trovejar suas águas.