19 outubro, 2010

Crepitações


Depois de ter escrito o último post - toda influenciada por um momento Harry Potter - me lembrei que o melhor modo de conseguir fazer um Patronus é procurar dentro de si a lembrança mais querida: um momento de encontro, um lugar de proteção... Encontrar dentro da gente um espaço de vida e intensidade, que alimente a esperança.

E então o final de semana não poderia ter sido melhor para isso. Nem precisei ativar a memória ou a imaginação - foram tantos encontros que o que era brasinha de esperança na sexta-feira virou fogueira incandescente no domingo à noite.

Começou no sábado de manhã, na panfletagem em Pinheiros - super significativo que o encontro tenha sido marcado em uma esquina: espaço público da rua, da visibilidade e da comunicação. As pessoas vinham chegando, se aglomerando e logo já tinha bandeira, panfletos, adesivos e, vira e mexe, uma buzina companheira se identificando com a gente. Inspira fundo... e faz a brasa arder mais forte.

Depois do almoço, fomos visitar a minha mãe. E fazia muito tempo em que a gente não sentava, assim,  sem pressa em torno da mesa, e conversava tanto. As crianças feliz e brincantes, a mesa tão cheia que o Padilha ficou acompanhando a bagunça da sala [tem trilha mais boa que felicidade distraída?], e uma falação e risadeira de darem gosto!

Ainda no sábado, teve mais encontro - e dessa vez, dos grandes: foi a festa de comemoração dos 70 anos do Fausto (de quem eu já falei aqui). E ao vê-lo, tão lindo e querido, comecei a achar que o Fausto vai mesmo é ser eterno - é tanta gente que o ama, é tanto amigo, tanta amiga que é como se vida tivesse dado em volta dele um laço bem apertado. A alegria radiante dele em meio a tanta gente que passou e que ficou em sua vida, juro pra vocês, deve me iluminar por uns bons anos. 

Cada reencontro com o Fausto faz a vida transbordar um bocadinho: perder as margens, irromper furiosa por entre as frestas e brechas, rasgar rachaduras no todo-dia da distância em que vivemos.

Como se não fosse suficiente, ainda teve rever amigos e professores queridos: a Roberta e o Rômulo,  a Clarissa, e até a Carla, que não via desde nossos...6, 7 anos?! E a Poliana, que foi minha professora de Filosofia e Sociologia no Magistério, a quem eu admiro imensamente (e continuo admirando) e que teve tanta importância nas minhas escolhas profissionais. Que delícia revê-la! Que coisa boa rever a Marli, que foi minha professora de Didática e também de Ensino de Artes! Rever a Inês, professora de Matemática e de Metodologia de Ensino da Matemática - acho que ela mal se lembra de mim, mas eu guardo comigo até hoje a sensação dupla de fascínio e frustração quando, nas aulas de Metodologia, ela fez a matemática parecer tão próxima e concreta. Fascínio pelo mundo que se abria; frustração porque podia ter sido tão mais fácil e interessante. O passado há quinze anos invadindo sem pedir licença o agora, que a gente é mesmo assim: bricolagem estranha e vívida; o colorido dos vínculos recordados rolando doidos no caleidoscópio do que somos hoje.

No domingo, ainda sobrou folêgo pra mais encontro e delicadezas - era dia de piquenique, afinal. Corre daqui, corre de lá, improvisa petiscos e lá fomos todos os cinco rumo à praça, carregando guacamoles, sanduíches de ricota com azeitonas e de queijo e lombinho e uma salada de cenoura, ricota e passas. Contrariando as previsões, o dia estava azul e amplo. E, como disse a Neide, só vimos chuva de pitangas e uvaias. A separação das frutas me lembrou as tardes no quinta da minha tia Roseli - a goiabeira enlouquecida de frutas e a gente sentada, à sombra, frente baldes e baldes de goiabas que lentamente iam virando geléias, polpa congelada, doce-orelha... Em certas horas das tardes de verão, em que o ar fica parado e o tempo suspenso, ainda dá pra sentir o cheiro das goiabas maduras - ainda que nem na mesma casa minha tia more e que a goiabeira um dia tenha ficado cansada.

O domingo já estava terminando quando chegamos em casa. A casa de perna pro ar, o cansaço se fazendo sentir... e uma brisa leve de folhas soprando por dentro da gente, atiçando as esperanças já  quase esquecidas do morno da brasa.

Imagem: www.gettyimages.com

15 outubro, 2010

Expecto Patronum

"Ninguém abra a sua porta
para ver que aconteceu:
saímos de braço dado,
a noite escura mais eu".
(Cecília Meireles)

Pior mesmo é quando a noite invade a gente. É tanto absurdo que, juro, parece que se aproximou de mim um dementador...

Dá licença que vou ali, respirar um pouquinho, tomar um ar, me concentrar em outra coisa, para ver se vislumbro um Patronum bem bonito e forte para tirar de dentro de mim essa desesperança.

13 outubro, 2010

pequenino conto de terror e ternura


Ele foi minha primeira paixão. Amor, já tinha tido alguns; poucos, já que nem acabara de dobrar a esquina da infância. Alguns: platônicos, enrolados, feitos de olhares de longe na hora do intervalo escolar ou de timidez, nos bailinhos e festas. Mas paixão? Só com ele mesmo.

Uma noite, devia ser dezembro, estávamos namorando na rua dele quando ouvimos uma freada brusca e, em seguida, um carro acelerando. Corremos para ver o que era e encontramos já uma pequena aglomeração se formando, em torno de um gatinho atropelado. Não olhei direto, aflita com a morte tão próxima - ainda mais tão de repente, esquecida que estava de que o corpo é também peso frágil  (naquele momento, o corpo era só leveza de pelos arrepiados). Ele sim, mais corajoso, olhou, chegou perto, reconheceu o bichinho, lamentou. Lamentamos. A morte do gato e a covardia do motorista.

Constatada a morte, era a hora de contar à dona. De novo, o único corajoso foi ele - tocou a campainha, acolheu os conselhos de ser suave... e, mal a dona do gatinho surgiu à porta, disparou à queima-roupa: "um motorista atropelou um gato. Era o seu".

Boquiaberta a menina. Boquiabertos todos nós, ali em volta. Era isso então a suavidade? Atropelar as palavras, atropelar com palavras?

Me deu um susto, aquele menino. As farpas do desajeito fazendo cicatriz no veludo da sua companhia. Me encantou, também, sua honestidade crua, sua coragem sem o pudor da pena. Os pés turvados de paixão se deixando lamber pela água límpida da ternura.

Imagem: Nacho Gomez

Cinco anos


E hoje é aniversário do Rodrigo: cinco anos. Tão pequeno, tão enorme, esse serzinho que é nosso companheiro.

Este ano ele dispensou a festa; preferiu ir para a praia, ter um tempo de atenção só pra ele sem competir com trabalho, tarefas da casa ou mesmo o nosso cansaço. Foi o que ele me explicou na sexta-feira antes da viagem: "viajar é bom, mãe, porque você e o papai não trabalham, descansam um pouquinho...". Mesmo com o frio e a chuva que nos trouxeram de volta antes do combinado, foi mesmo uma delícia passear com ele de mãos dadas pela areia, dar muitos abraços no mar gelado, catar conchinhas desconfiando de que ali dentro ainda tinha bicho, deixar pegadas na areia, fugir da chuva, vê-lo experimentar o pé de pato na piscina...

Eu me surpreendo sempre, não posso negar. Com essa criança querida e tagarela; esse menino que já foi Gohan dentro da minha barriga, já foi bebê sempre no colo e agora é toda uma comprideza de pernas e braços, que se esticam elásticos para ampliar o mundo.

Na semana passada ele cortou o cabelo, e é sempre muito engraçado porque demoro a me reacostumar - fico estranhando, tomo sustos... reaprendo a vê-lo: a sobrancelha tão igualzinha à do pai, que estava escondida sob a franja, os olhões de mangá, de cílios tão compridos que chegam a fazer cócegas na vida toda vez que ele pisca. Todo misturado, mas tão ele mesmo, esse menino.

É tão pequenino, em tudo aquilo que ainda não conhece. E tão imenso, de tantas possibilidades. Super companheiro para passeios a pé, jogos de tabuleiro ou cartas, aventuras culinárias, viagens, danças, festas à fantasia, caretas estranhas, preguiças matinais, pinturas a dedo, brincadeiras de massinha e filmes de aventura. Cheio de doçuras e brabezas - ambas igualmente intensas.

É coisa querida da vida, esse menininho de cinco anos. Bem menos meu do que já foi: vai saindo do colo, para caminhar ao lado. Parabéns, Rô! E mil beijocas na ponta do seu nariz-meleca.

08 outubro, 2010

Manteiga

Este semestre, as quintas-feiras têm sido de muita correria, já que dou aula à tarde e à noite. Mais do que isso, tem sido também de muita saudade do Rodrigo, pois o levo na oficina de brincadeira de manhã e é o Edu quem pega, leva para almoçar, leva na escola... E quando chego em casa, às 11h, o menino já está bem longe, nos braços de Morpheus.

No começo, quando comecei a dar aulas à noite, ele ainda conseguia adotar umas estratégias de acordar quando eu chegasse - dormia às 7h, sem jantar e por volta das 11h levantava, para um lanchinho e um carinho. Mas depois foi se acostumando e aí a gente só se via mesmo no outro dia de manhã.

Ontem, mal tinha chegado em casa, de repente vejo um menino muito saltitante e sorridente passeando pela casa. Todo feliz! Tão querido! Me deu um beijo, conversou um pouco e depois voltou a dormir.

Hoje de manhã, conversando com ele, comentei: "filho! você ontem acordou de noite". E ele, muito docemente, me dando um beijo na testa, "foi pra ver você, mamãe".

O coração cresce-cresce dentro do peito, chega a perder a borda de tanta ternura. Feito calda quente que se esparramasse macia, cavando novos caminhos por onde inventa escorrer. Meu coração de mãe, às vésperas dos cinco anos do Rodrigo, agora é assim: inteiro estriado de sustos e surpresas, sulcado das enchentes súbitas de tantas doçuras inesperadas.